O rei que serve

Atualizado em 25/06/19 às 13:328 minutos de leitura409 views

Este ano a festa de Cristo Rei, não só nos serve para concluir o Ano litúrgico, que seguimos pelas mãos do evangelista Lucas, mas serve também para encerrar o “Ano da Fé”. Seria conveniente perguntar-nos em que Deus cremos? O Deus revelado por Jesus de Nazaré é de verdade, o objeto de nossa fé?

São Lucas nos deu a chave durante este ano litúrgico para descobrir Jesus, como o Salvador da humanidade, que através do povo de Israel, nos deu uma mensagem de salvação universal. Sabemos que este evangelista trata de por em primeiro plano a misericórdia de Deus com sinais visíveis da atuação de Jesus. E se preocupou de modo especial das mulheres, dos pobres e marginalizados. Apresentou todas estas atitudes numa longa viagem que Jesus fez com seus discípulos, desde a Galileia até Jerusalém. Ali foi entregue à morte, mas Deus o ressuscitou como o anunciavam as Escrituras. E segue presente em sua Igreja, que é enviada a realizar a tarefa que o Pai lhe havia encomendado.

Ao escutar um conto ou uma fábula que sempre começa dizendo: “Era uma vez um rei...” as crianças frequentemente expressam o desejo de poder ver um verdadeiro rei com seus olhos. É difícil! Ainda que haja reis e rainhas, sua aparição já não é fabulosa e seu poder político não corresponde ao que seu titulo significa nos contos. Nesta situação, muitos se perguntam que sentido tem ter, no calendário litúrgico a festa de Cristo Rei. Não se lhe podem aplicar imagens fantásticas extraídas das fábulas, seria quase ofensivo, e a função concreta que tem hoje os reis e rainhas não concorda com a ideia que deve expressar esta festa. Com isso emerge, sem duvida, um aspecto positivo, quer dizer, a consciência de que a majestade de Cristo é totalmente especial.

Os quatro evangelistas o chamam de Rei, sem medo de confundir um reinado terreno e um reinado universal. O próprio Jesus afirma que é Rei, mas com uma maneira peculiar de reinar, o seu reino não é deste mundo (cf. Jo 18,36-37).

As leituras que se proclamam neste dia nos dão a chave para a correta interpretação do reinado ou senhorio de Jesus. A leitura do 2° Livro de Samuel (cf. 2Sm 5,1-3) “narra um acontecimento importante na história do povo de Israel. Davi é reconhecido rei pelos anciãos de ‘todas as tribos’ (vv. 1-2). A ‘aliança’ e a ‘unção’ do rei (v.3) tornam-se o modelo exemplar da teologia messiânica: o futuro descendente de Davi herdará o seu trono; será também ele um ungido e consagrado como rei legitimo e estabelecerá uma aliança com a Humanidade. O soberano antigo, portanto, é o ‘tipo’ de Rei Messias, o Cristo Rei. (Casarin, 2010.) Fica clara que a missão deste Rei como tal, mais que governar, consiste sobretudo, em “apascentar” o povo de Israel. Jesus herda, por sua condição de Messias, o ser o Filho de Davi, o rei pastor. È, portanto, herdeiro de um reino que “apascenta o povo” com carinho e misericórdia.

“No começo da Carta aos Colossenses (cf. Col 1,12-20). Paulo coloca no seu discurso um texto lírico, que celebra o papel cósmico de Cristo Jesus. Convida a ação de graças através de um hino (vv. 15-20) que começa com importantes títulos cristológicos: Ele é ‘imagem’, primogênito da Criação; é ‘Principio’. Primogênito de entre os mortos’ (v.15). Assim a Redenção completa a obra da Criação... O hino é um cântico de louvor a Cristo triunfador que, com a Sua ressurreição, realizou uma nova Criação, mais completa que a primeira, conferindo-lhe a plenitude em virtude da reconciliação do Universo com Deus. O papel ‘real’ do Messias, portanto, é explicado como princípio cósmico de unidade e harmonia.” (Ibid. Casarin.)

O evangelho de Lucas (cf. Lc 23,35-43) narrando a crucificação quer apresentar algo mais profundo e extraordinário que a simples execução de um profeta, por isso chama a atenção na sua narrativa para as atitudes dos que assistem a cena: o povo olhando, os chefes, zombando, os soldados também caçoavam dele; diziam: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo”. (vv. 35b-37) Entre esta ultima tentação e aquelas primeiras, no deserto (cf. Lc 4,3) Jesus se manteve fiel aos planos de Deus. Não é rei para dominar. Recusa o prestigio, o poder, o domínio sobre os outros, e só busca, a humildade, a simplicidade, o serviço até dar a vida. Se cumpre o que Ele havia manifestado: que seu reinado não é como os deste mundo.

Lucas então engendrou um “diálogo” assombroso na hora da cruz, com os dois malfeitores crucificados com Jesus (vv. 39-43). “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com teu reino”. (v. 42) Este pedido do ladrão arrependido oferece a Jesus a possibilidade de dar vida e salvação a quem irá morrer como Ele a mesma morte desprezível. É como uma prece do “bom ladrão” a Jesus crucificado. A interpretação desta prece é para Lucas todo um ensinamento de que o Crucificado é o verdadeiro salvador e de que por meio de sua vida e de sua morte, “Deus salva”. “Este ‘hoje estarás comigo no Paraíso’. (v. 43) é o hoje perene da salvação e da nova humanidade dos redimidos, levados para o reino de Cristo pelo sangue da sua cruz. Foi assim que Deus Pai reconciliou o homem e todos os seres consigo, confirmando o seu Filho na primazia que, pela criação e redenção, exerce sobre o cosmos e sobre os seres humanos”. (Caballero, 2000.)

Tinha que ser precisamente um malfeitor o que descobriu o reinado de Jesus, tinha que ser na cruz... Alguns não o reconheceram quando fazia milagres e ele o reconheceu crucificado em um madeiro. A oferta do “paraíso” ao ladrão arrependido reflete o ponto culminante da missão de Jesus. “Eu não vim chamar os justos, e sim os pecadores.” (Lc 5,32) Agora, no suplício da cruz, quando os que estão ao seu lado entendiam a salvação de maneira diferente, um ladrão, alguém destroçado, um bandido ou malfeitor, no último instante soube “roubar” a salvação, um lugar no Reino. Reconhece a realeza de Jesus e se converte no primeiro cidadão do Reino do Céu.

Mas, Jesus sempre esteve cercado de pobres, marginalizados, malfeitores e ladrões. O ladrão foi o último a reconhecer o senhorio de Jesus e Ele oferece tudo o que é e tem. A partir de sua impotência de crucificado, mas de sua posição como senhor verdadeiro, oferece perdão, misericórdia e salvação. Mostrando que o arrependimento e o perdão de Deus são condições fundamentais para tomar parte no seu Reino. Esta teologia da cruz é a chave para entender adequadamente a Jesus como o rei do universo e Senhor.

Na sagrada liturgia contemplamos a Jesus como Rei. Mas, com uma maneira típica de reinar, seu trono é a cruz e seu cetro de mando é uma jarra cheia de água para lavar os pés dos seus discípulos. Cristo reina da cruz porque nela está como que o clímax da sua missão de entrega radical de sua vida por toda humanidade, vida vivida numa profunda atitude de serviço. Se durante o ano litúrgico recordamos os momentos mais significativos da vida de Jesus, neste último domingo queremos resumir essa vida dizendo que Jesus foi toda a sua vida o “servidor” do Pai e dos seus irmãos e irmãs mais desvalidos e que se quisermos ser seus seguidores, temos de imitá-lo e nos pormos ao serviço de nossos irmãos e irmãs, ainda que isso muitas vezes nos custe esforços, sofrimentos, cruzes, compromissos, entregas, etc. Essa maneira de viver e de morrer de Jesus nos ganhou a salvação.

Nosso mundo precisa de “servidores”, alguém já disse que precisamos mais de construtores, do que de arquitetos. Os servidores fazem falta em nossos ambientes de trabalho, em nossas associações de moradores, nas nossas famílias, na política e nas instituições públicas, nas paróquias e em nossa Igreja. Jesus é Rei, de um Reino de gratuidade onde não tem lugar a exibição de poder, nem dele nem nossa. No seu Reino não cabem disputas ou competições. Disputa-se poder na política, no esporte, no trabalho e infelizmente até entre os seguidores de Jesus. Mas, no Reino de Jesus, não! Sabemos que o Reino de Cristo vive em um estado permanente de tensão, porque encontra resistências.

Jesus reina servindo toda a humanidade. Em seu reino os últimos são os primeiros e os primeiros os últimos. Agora compreendemos por que Jesus nos disse que o reino não virá espetacularmente, se não que está dentro de nós. Você pode ser construtor do reino se trabalhar pela paz e a justiça, se for capaz de servir como Jesus, de perdoar como Ele, de lutar em favor da vida e da fraternidade. Cristo é a cabeça do corpo da Igreja. Nós somos seus membros. Todos os crentes, não só os atuais, mas também os que existiram antes de nós e os que vão existir depois até o fim do mundo pertencem a seu corpo, dele que é a cabeça. Neste "Cristo total" todos os batizados assumimos a missão e o destino de Cristo: fazer possível já aqui a realidade do reino e esperar com confiança que um dia ressuscitaremos com Ele. Ao terminar o “Ano da Fé” temos dado conta de que o cristão se distingue pelo que crê, pelo que celebra e, sobretudo pelo que faz? Uma fé que não leva ao compromisso de vida, ao serviço desinteressado, não é uma fé verdadeira.

Para que chegue este reino que proclamamos no prefácio da festa de hoje, como “um reino eterno e universal: reino da verdade e da vida, reino da santidade e da graça, reino da justiça, do amor e da paz”, os cristãos e todas as pessoas de boa vontade trabalhamos, sofremos e oramos: “Venha a nós o vosso Reino”. Poderia se dizer que estamos pondo em nossos lábios o desejo do “bom ladrão”: “lembra-te de mim quando estiveres em teu reino.” No Batismo ao ungir-nos com o “crisma” a Igreja nos fazia “profetas, sacerdote e reis”. Que este final do Ano da Fé nos ajude a comprometer-nos como cristãos que tentam viver sua fé batismal na profecia, nas orações e sacrifícios, mas, sobretudo, no serviço a nossos irmãos e irmãs, na compreensão, na tolerância e no amor. Assim o Reino de Cristo, que não é deste mundo, o faremos presente para este mundo.

Bibliografia:

Textos e referências bíblicas: Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Paulus, 2002.

Csarin Giuseppe (org.) Leccionário Comentado – Tempo Comum, semanas XVIII-XXXIV. Lisboa (Portugal) Paulus, 2010.

Caballero, B. A Palavra de Deus de cada Domingo, Ano C. Apelação (Portugal), Paulus, 2000.

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