O Rei é vassalo

Atualizado em 25/06/19 às 13:345 minutos de leitura582 views
Por: Pe. Assis Pereira Soares, Paróquia N. Sra. e Fátima   Neste domingo, último do Ano Litúrgico, solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo a Liturgia que celebra Cristo, o faz hoje a partir de duas imagens: do Pastor e do Rei. São dois títulos que não se limitam a nos apresentar, por assim dizer, duas faces diversas da mesma pessoa e nem a descrever de modo estático nossa relação com Cristo. Entre aqueles dois títulos de Cristo perpassa toda a história da Salvação e é, por isso, uma grandiosa teologia da história que nesta solenidade somos chamados a aprender da Liturgia. O ano de Igreja não podia se concluir de maneira mais digna. No Antigo Testamento, a imagem do Deus-Pastor é característica do profeta Ezequiel que desempenhou o seu ministério profético no exílio da Babilônia (587-571 a.C.). Por culpa de seus chefes, Israel é um rebanho disperso. O desterro da Babilônia é uma calamidade que ameaça a própria sobrevivência de Israel. Por isso o Senhor vai intervir e vai realizar um plano de Redenção e Salvação. Já que os maus pastores em vez de ocupar-se das ovelhas, egoístas e avaros só buscaram as próprias conveniências, o Senhor mesmo se faz Pastor de seu Povo. O profeta Ezequiel (cf. Ez 34, 11-12,15-17) descreve Deus que continua Pastor do seu Povo, na pátria ou no exílio. A metáfora do “pastor” é compreensível no contexto do Oriente antigo, onde os reis eram chamados por excelência “pastores dos povos”. Ezequiel apresenta a alternativa aos dirigentes de seu povo, aos reis, sacerdotes e classe dominante: o Senhor será um Pastor de verdade: “Eu mesmo vou apascentar as minhas ovelhas e fazê-las repousar... vou procurar a ovelha perdida, reconduzir a extraviada, enfaixar a da perna quebrada, fortalecer a doente, e vigiar a ovelha gorda e forte. Vou apascentá-las conforme o direito... eu farei justiça entre uma ovelha e outra, entre carneiros e bodes.” (vv. 15-17) O Senhor assim expressa pela boca do profeta sua ternura infinita, seu amor pelas pessoas mais desprotegidas; “tratar”, “cuidar” de quem está “ferido”. Temos sempre aplicado esta profecia de Ezequiel a Cristo. Mas também o que podemos fazer é poder aplicar a nós mesmos estas palavras. Todos somos “ovelhas” de Cristo, e todos somos, ou podemos ser, “pastores” de alguém. Como ovelhas de Cristo, devemos deixar-nos conduzir por Ele, não por interesses puramente egoístas; e sim como pastores ou guias deveremos tratar de imitar o “bom pastor”, atendendo a todo aquele que requer nossa ajuda, com especial esmero e dedicação aos que mais necessitem. Na plenitude dos tempos, os gestos que o Senhor prometeu a Ezequiel atuar, tornou-se visíveis nos evangelhos do Reino proclamado por Jesus. O Rei-Pastor cuida de suas ovelhas. Como o profeta nos promete que na era Messiânica o Filho de Davi, o Messias, será nosso Rei-Pastor. Esta maravilha de amor a realizará Deus enviando seu Filho, o Messias. A soberania de Deus tornou-se presente na pregação e na pessoa do próprio Jesus, o “bom Pastor que oferece a vida pelas ovelhas” (cf. Jo 10). Deus reinará em seu povo, Deus apascentará seu rebanho por meio do Messias. Jesus, na narração profética do “Juízo Final” (cf. Mt 25, 31-46), reivindica para si o título de Rei-Pastor e a função de juiz universal. As imagens são simples, a linguagem é popular, mas a mensagem é extremamente importante: é a verdade sobre o nosso destino último e sobre o critério com o qual seremos avaliados, é a gramática da vida: “Tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era estrangeiro e me recebestes em casa. Estive nu e me vestistes, doente e cuidaste de mim, preso e fostes me visitar.” (vv. 35-36) Quem não conhece esta página? São Mateus abre aqui uma grande porta à ação salvadora de Deus com toda a humanidade e atualiza a presença de Jesus nos fracos, nos pequenos, nos marginalizados, nos excluídos, nos estigmatizados. O “Filho do Homem, Rei-Pastor-Juiz reúne todos, quer salvar a todos. Os misericordiosos não têm motivo de temer o julgamento, mesmo aqueles que não o conhecem: “Quando foi que ti vimos...? (v. 38). Jesus, e só Ele, irá separar as ovelhas dos bodes (v. 32). Aqueles que amaram sem preconceitos quem estava necessitado, não procuraram retribuição. Deram amor na simplicidade e na gratuidade, não têm o que temer: “Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos menores, a Mim o fizestes” (v. 45). “Viste-Me” no rosto semelhante ao de Deus, do ser humano criado à sua imagem, neste mesmo ser humano irmão do “Filho do Homem”, com os sinais do sofrimento, do abandono extremo e da Cruz, no menor destes irmãos com os quais o Rei da glória estabeleceu aliança. Os Padres da Igreja sempre nos ensinaram; “Não desprezes aos pobres que arrastam sua miséria como se fossem de nenhum valor. Considera quem são e reconhecerás a sua dignidade: eles são a presencialização do Salvador. De fato, Cristo, em sua bondade, transferiu-lhes a sua própria pessoa.” (São Gregório de Nissa, séc. IV). E Santo Agostinho (354-430) resume: “O Cristo triunfante no céu é mendigo na terra”. Não devemos ter ilusões, o Rei é o vassalo, Cristo é um mendigo, se identifica com os que sofrem a fome, a sede, o cárcere, a doença, a marginalização... Neles está, e por isso julgará como quem está implicado na ofensa. Deus não nos julgará pelo que tenhamos feito a Ele. Ninguém ama a Deus diretamente, nem ofende diretamente a Deus. Amamos-lhe e lhe ofendemos em nosso irmão. O ser humano é o “sacramento de Deus”, a necessária mediação e o único caminho para chegar a Ele. Todos serão julgados segundo sua atitude com os irmãos menores de Jesus. Seremos julgados pelo amor que tenhamos tido aos outros e pela capacidade que tenhamos desenvolvido de criar no mundo condições e relações mais humanas e fraternas de vida. O amor não é uma ideia abstrata, um bom sentimento, uma palavra romântica ou carinhosa. São obras, são ações concretas: Dar de comer, vestir, visitar... E fazer tudo isso não necessariamente “por amor a Deus”. Basta que se faça por “amor ao ser humano”. Ninguém será julgado por sua doutrina, pelas ideias que teve sobre a religião, pelos dogmas nos quais creu. Só contarão os atos de serviço ao próximo, os atos de justiça com o irmão oprimido e necessitado de nossa ajuda. Contará o ter cuidado com uma caridade organizada e dignidade, da promoção e defesa dos direitos de quem passa fome e sede, a prática da justiça, traduzida em solidariedade e partilha dos bens. Coisas tão simples e tão básicas, elementares que nos salvarão.

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