Ser cristão é ser vocação

Atualizado em 25/06/19 às 13:255 minutos de leitura444 views
A Palavra de Deus nos coloca neste Domingo em contato com dois relatos vocacionais. A vocação de Samuel (cf. 1Sam 3,3b-10.19) e o chamado dos primeiros discípulos por parte de Jesus. (cf. Jo 1,35-42) Assim sobressai hoje o tema da vocação e o papel decisivo do “guia espiritual” no caminho da fé, e em particular, na resposta à vocação. Samuel, o profeta pregador que, no séc. XI a.C. haveria de imprimir novo rumo ao povo de Israel; viveu desde pequeno no Templo. Ele fora oferecido ao Senhor por sua mãe Ana e vivia prestando seu serviço devoto às ordens do sacerdote Eli no santuário de Silo. Durante anos participou no culto divino, nos sacrifícios e na proclamação da Torá: o texto bíblico diz, inclusive, que Samuel dormia perto da Arca de Deus. Mas, não obstante essa intimidade física com o Senhor, Samuel era apenas um menino inexperiente, ainda não o havia experimentado, porque “ainda não conhecia o Senhor, pois até então, a palavra do Senhor não se lhe tinha manifestado.” (v. 7) Pode acontecer, e de fato acontece, ouvir falar de Deus, de conhecer muitas verdades que lhe dizem respeito; pode mesmo acontecer que alguém cumpra ritos e cerimônias sem que aconteça um encontro pessoal com Ele, sem ouvir essa voz que desperta do sono uma vocação ou que convida a uma relação de profunda e vital intimidade. Para distinguir a voz do Senhor dentre as muitas que ouvimos. Não basta apenas fazer silêncio e estarmos disponíveis à sua entrada em nossa vida. Neste processo de maturação é fundamental a presença de um guia que, como o sacerdote Eli e como João Batista nos ajude a ler os acontecimentos e nos sugira o que fazer e indique o caminho para a experiência pessoal com Jesus. É uma tarefa delicada que exige intuição, sensibilidade e, sobretudo, humildade, sabendo que se é instrumento nas mãos de Deus, ao seu serviço e a serviço dos irmãos. A própria fé cristã, em si, e o chamado a seguir Jesus mais de perto na vida consagrada passa normalmente através das palavras, mas, sobretudo do testemunho de alguma pessoa, dos pais ou de um “irmão mais velho”, normalmente um sacerdote. Essa pessoa vai esclarecer sem fingimento nem hipocrisia, aquilo que verdadeiramente conta e é essencial para o vocacionado e o que Jesus pede. Descoberta progressiva da verdade, tendo paciência de reconhecer que não sabemos tudo. O discipulado consiste em permanecer sempre com o Mestre e deixar-se guiar por Ele, para onde quer que Ele nos conduza. Sempre houve mestres e líderes espirituais entre o povo, sempre existiram chefes ou guias natos, mestres com autoridade que souberam convencer e arrastar com seu testemunho, outros para Cristo. O Evangelho de hoje usa três verbos para expressar o que vão viver os primeiros discípulos junto a Jesus: “foram… viram… permaneceram com Ele.” (Jo 1,39) É o itinerário que percorre toda pessoa que faz a experiência do encontro com Jesus. Geralmente seu começo é muito simples: um escutar alguém que fala de Jesus; depois vem o ver, talvez por simples curiosidade; não importa, o importante é buscar ali onde crê que está Jesus. Um dia, se dará o encontro. Não será um encontro conceitual, só de ideias, mas uma experiência existencial, transformadora. Ele nos tira de nós mesmos, inclusive é possível que nos mude até o nome, nossa vida e nos confie uma função, uma missão. Esta experiência foi tão intensa que cerca de setenta anos depois, João recorda exatamente a hora em que se deu: “quatro horas da tarde” (v.39), porém não se recordará o que falaram. Ele lembra-se somente uma tímida troca de palavras: “O que estais procurando? Onde moras? Vinde ver” (v. 38-39) e recorda sua proximidade, “permaneceram com ele”. A partir desse encontro, não só começaram a ser seguidores do “Mestre”, mas convidaram outros a terem essa experiência com Jesus. É que a experiência de encontro com Jesus é “contagiosa”, se anuncia e se compartilha, para que outros também a possam desfrutar. André convidou seu irmão Simão, a quem Jesus “batizou” de “Cefas” (pedra). Um nome novo, uma vida nova e uma missão. Que cada um de nós tenha essa “hora quarta” que jamais João esqueceu e que lhe fez seguir o Senhor até ao pé da cruz. Também hoje o Senhor segue chamando-nos. Porque ser cristão é um chamado-resposta pessoal, não é seguir uma doutrina. É seguir uma pessoa. Não se é cristão por nossos conhecimentos. Não é um título conseguido em uma escola de teologia. Ser cristão é algo novo, é vida nova, é viver de forma coerente com o chamado que Deus nos faz. Para a Bíblia a pessoa humana é uma unidade de interioridade e de exterioridade que, embora complexa, é tão forte que se pode dizer que o ser humano não “tem”, mas “é” um corpo. Por isso o Apóstolo Paulo pode afirmar aos cristãos de Corinto (cf. 1Cor 6,13ss) que “o corpo não é para a imoralidade, mas para o Senhor e o Senhor é para o corpo” ou seja, que o Senhor se une à pessoa na sua totalidade, às suas relações, aos seus afetos, aos sonhos e às emoções. Para Paulo, na sexualidade sem amor, o discípulo de Cristo renega a sua própria pertença ao seu Senhor e profana o seu corpo, santuário em que pode celebrar o culto da sua vida oferecida a Deus. O teólogo Pe. José Cristo Rey Garcia Paredes diz que temos um corpo vocacional: “Quem escutou a voz de Deus descobre seu corpo de outra maneira. Aquele que nos dará seu Corpo valoriza também nosso corpo. Abençoa-o assim que nasce, declara-o corpo de um filho de Deus, cura-o quando adoece, consagra-o para que seja santuário do seu Espírito, promete-lhe a vida eterna e a ressurreição, une-o indissoluvelmente a seu Corpo Ressuscitado. Temos um corpo vocacional, um corpo de Aliança que a todo o momento reivindica sua identidade. Por isso, não pode ser profanado por tipo nenhum de idolatria. Deus nos deu um corpo para ser entregue sem reservas à sua vontade. Recebemos um corpo chamado não para o sacrifício nem para a sua autodestruição, por meio do circulo vicioso das dependências, mas chamado a ser corpo da Aliança, de Amor, corpo entregue, corpo eucarístico.” Enquanto nosso cristianismo não for para todos os cristãos, essa consciência vocacional e de chamado e proximidade, de seguir e viver a intimidade com Jesus, “morando” com Ele, terá mais de superstição que de religião; terá mais de conhecimento teológico do que da autêntica entrega pessoal e empenho na construção do seu Reino. Existirá sempre a dicotomia entre o que cremos e o que vivemos. Daí a tremenda responsabilidade que todos temos em ser coerentes na vida, com a fé que professamos e com a mensagem que queremos comunicar. Porque não passarmos da evangelização à experiência viva e pessoal de sermos corpo vocacional, território do sagrado e morada de Jesus?

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