Congresso Eucarístico Nacional: Confira o artigo de Dom Armando Bucciol
O Bispo Diocesano de Nossa Senhora do Livramento/BA, Dom Armando
Bucciol, proferiu uma conferência no Congresso Eucarístico Nacional, no Teatro
dos Guararapes; sua conferência abordou o tema “EUCARISTIA E MISTÉRIO PASCAL: aspectos
históricos e sistemáticos”.
Abaixo disponibilizamos o artigo que Dom Armando trabalhou em sua conferência.
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EUCARISTIA
E MISTÉRIO PASCAL:
aspectos
históricos e sistemáticos
Estote quod videtis, accipite quod estis
“Sejais o que vedes, recebais o que sois”
Santo Agostinho (Discursos 272)
Introdução
a)
Temos apenas um pão. Os
discípulos haviam se esquecido de levar pães e tinham apenas um pão no barco
(Mc 8,14). Perguntemo-nos: qual pão os
discípulos tinham no barco? É o mesmo
Jesus, pão vivo que desceu do céu
(Jo 6,51), pão da vida (6,48); carne para a vida do mundo (6,51). Os discípulos não percebem quem é este
pão que está com eles, porque seus olhos estão impedidos de enxergar, não
entenderam a multiplicação dos pães! Paulo afirma: Porque há um só pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, pois todos
participamos desse único pão (1Cor 10,17).[1] Com
esse símbolo tão expressivo, abrimos conversa sobre Eucaristia e mistério pascal,
considerando alguns aspectos históricos
e sistemáticos dessa história de amor contida na Eucaristia.
O assunto é complexo. No breve tempo à
disposição, desejo apresentar algumas essenciais informações e considerações
teológicas. Possamos viver o Congresso Eucarístico – grande kairós em nossa vida eclesial - com
maior intensidade de fé. A Constituição conciliar Gaudium et Spes, 38, tratando da atividade humana levada à perfeição no mistério pascal, afirma: “O
Senhor deixou aos seus um penhor de esperança e o viático da caminhada no
sacramento da fé em que os elementos da natureza, cultivados pelos homens, se
transformam no Corpo e Sangue glorioso, na ceia da comunhão fraterna e na
prelibação do banquete celeste”.
b) Eucaristia e mistério pascal. Nos
textos do Novo Testamento, a palavra Eucaristia expressa louvor,
agradecimento, um ótimo agradecimento.
Todavia, nos escritos mais antigos da literatura cristã – Didaquê, Inácio de
Antioquia, Justino – é usada para dizer a ceia
do Senhor (1Cor 11,20), a fração do pão (At 2,42.46; 20,7.11), a refeição
comunitária [ágape] (Jd 12), “transformando, assim, o
sacrifício do Cristo no louvor mais puro e total que do horizonte terrestre
possa subir ao Pai”.[2] Na
linguagem litúrgica e teológica, mistério pascal ou da
páscoa se encontra já em autores do II século (ex. Melitão de Sardes;
Anônimo Quartodecimano); “a
categoria mistério pascal é uma das mais felizes recuperações do
movimento litúrgico do século passado”.[3] De
fato, encontra-se nos documentos do Concílio Vaticano II,[4]
começando por Sacrosanctum Concilium
(SC) – o documento conciliar sobre liturgia – que, no número 5, cita a antiga
eucologia romana (Sacramentário Gelasiano antigo), onde mistério pascal indica a morte-ressurreição e ascensão de Jesus
Cristo. Desse modo, o mistério pascal
se torna o fundamento e a chave interpretativa de todo o culto cristão. SC ensina
que a liturgia atualiza esse mistério, sobretudo, mediante os sinais
sacramentais do Batismo e da Eucaristia: “Mediante o Batismo, as pessoas são
inseridas no mistério pascal de Cristo; morrem, são sepultadas e ressuscitam
com ele (Rm 6,4; Ef 2,6; Cl 3,1; 2Tm 2,11), recebem o espírito de adoção filial
no qual clamamos: ‘Abba, Papai’ (Rm
8,15), e se tornam as verdadeiras adoradoras que o Pai deseja (Jo 4,23). De
maneira semelhante, sempre que participam da Ceia do Senhor, anunciam sua morte
até que Jesus venha (1Cor 11,26) (SC 6). “O banquete eucarístico, de modo especial,
constitui o memorial do mistério pascal (SC 47). Ainda mais,
dele recebem eficácia e significado todos os sacramentos e os sacramentais e a
graça divina alcança todos os acontecimentos da vida humana e os santifica (SC
61). O mistério pascal é celebrado ao
longo de todo o ano litúrgico, na páscoa anual (SC 102) e na semanal, no dia do Senhor (SC 106) e, na memória do
dia natalício dos santos (SC 104). Com isso, o mistério pascal não fica
ligado somente à atividade litúrgica, mas se torna fundamento e critério
inspirador de toda a vida do cristão e de sua espiritualidade.
1. A PÁSCOA
HEBRAICA, ORIGEM, HISTÓRIA, SENTIDOS
Não faço
esta aliança e este juramento somente convosco,
mas com quem
hoje está aqui conosco diante do SENHOR, nosso Deus,
e com quem não está hoje aqui conosco (Dt 29,13-14)
1.1 Breve
história da Páscoa hebraica: rito do cordeiro e dos pães ázimos
Para compreender a Eucaristia que nós cristãos
celebramos, precisamos conhecer a longa história da Páscoa judaica e suas
expressões litúrgicas. Em sua memória, ela guarda dois ritos distintos: o do
cordeiro pascal e o dos pães ázimos. O rito do cordeiro lembra o
tempo em que o povo vivia de pastoreio. Na primavera – começo do novo ano – na
noite antes da partida para as pastagens do verão, os pastores imolavam um
cordeiro e pediam, sobre pastores e rebanho, a proteção divina contra as
influências demoníacas. Quando Moisés disse ao faraó: Assim fala o Senhor Deus de Israel: ‘Deixa ir o meu povo, para que
celebre uma festa para mim no deserto’ (Ex 5,1), talvez quisesse retomar,
com aquela celebração, as suas antigas raízes religiosas.[5] A
festa dos pães ázimos (mazzot) é
outro rito primaveril que marcava o início solene da colheita, no tempo em que
Israel vivia de agricultura. No santuário local, oferecia-se à divindade os
primeiros feixes de cevada, e os pães não fermentados (grego azymos), para suplicar os favores da
divindade sobre a colheita.
As duas festas – expressões de épocas e
condições socioculturais diferentes – eram celebradas no mesmo período. Provavelmente,
no tempo do rei Josias (641/640- 610/609 a.C.) e com a centralização do culto
em época deuteronomista, os dois ritos foram unidos para celebrar a festa da
Páscoa (Dt 16,1-4; 2Cr 36,17), que se tornou festa de peregrinação ao templo de
Jerusalém. “No período do pós-exílio, chegou-se a usar os termos pesah e mazzot sem distinção para uma
única celebração” (cf. 2Cr 30,1-2.5 e 13-21).[6]
Portanto, não foi a libertação do Egito que
determinou a instituição da festa, mas a coincidência da fuga do Egito.
Todavia, é preciso destacar a profunda mudança de sentido: as festas que nasceram
ligadas ao ciclo da natureza, tornam-se, em Israel, festas para recordar o acontecimento
mais marcante de sua história. Assim, o rito do Cordeiro será símbolo e memorial da libertação e dará sentido
religioso às origens de Israel.[7]
Consideremos brevemente o rito do Cordeiro,
seguindo a narração de Êxodo: Procurai e
tomai um cordeiro para vossas famílias, e imolai o cordeiro pascal (12,21).
E, quando vossos filhos vos perguntarem:
‘Que significa este rito?’, respondereis: ‘É o sacrifício da Páscoa do Senhor,
que passou adiante das casas dos israelitas, no Egito, quando feriu os egípcios
e salvou as nossas casas’ (12,26-27). É um rito a ser celebrado para fazer
memória de um fato que marcou a identidade do povo de Israel. Por isso, a
celebração deve acontecer numa vigília,
para recordar que aquela noite foi uma
noite de vigília do Senhor, quando os
fez sair da terra do Egito. Esta é a noite do Senhor, uma vigília para todos os
israelitas, em todas as suas gerações (Ex 12,42; cf. Dt 16,1-6).
O sacrifício do cordeiro e o costume dos ázimos servem para perpetuar a memória da libertação, a lembrança por excelência desse acontecimento. No livro do
Êxodo, dá-se às futuras gerações a ordem: Este
dia será para vós um memorial (hebraico
zikk?rôn, grego mn?mosynon) e o celebrareis como festa do Senhor. Vós o
celebrareis, como preceito perene, em todas as vossas gerações (Ex 12,14).
Ainda: Moisés disse ao povo: Lembrai-vos
do dia em que saístes do Egito, da casa da escravidão (...) Quando o Senhor te tiver introduzido na
terra dos cananeus... explicarás ao
teu filho: ‘É por causa daquilo que o Senhor fez por mim quando saí do Egito.
Isto te servirá como sinal da tua mão e como memorial entre teus olhos (Ex 13,3.5.8-9; cf. 13,14).
1.2. A
celebração da Páscoa, um rito memorial - aliança
A celebração da Páscoa será, portanto,
um memorial
– como um monumento, uma tatuagem, um pingente - diante dos olhos. O rito
servirá – por todas as gerações – como um sacrifício
memorial que reproduz ritualmente o
sentido religioso e espiritual do acontecimento
histórico. Desse modo, a intervenção divina não permanece no passado, mas
se torna atual para os que a celebram por meio do rito. Êxodo 12,11 prescreve: Assim o comereis: os rins cingidos,
sandálias nos pés, cajado na mão; e o comereis às pressas: é a Páscoa [isto
é, Passagem] do Senhor.[8]
Com insistência, a Mishná (= repetição oral ou tradição)[9] recomenda:
Em
cada suceder-se de tempos, somos obrigados a considerar-nos como se fôssemos nós mesmos que saímos do Egito. Está
dito, com efeito: ‘Naquele dia deveis narrar ao teu filho que isto (a Páscoa)
se faz por aquilo que o Senhor fez por mim na saída do Egito’. De fato, não só
os nossos pais foram libertados, mas nós mesmos, como está escrito: Ele nos tirou de lá para introduzir-nos na
terra prometida aos nossos pais (Dt 6,23).[10]
Nos livros sagrados do povo de Israel, a experiência
da libertação é narrada, tantas vezes, qual epopeia. As mais antigas profissões
de fé unem o nome de YHWH, o SENHOR, o Deus de Israel, a essa intervenção
histórica. “O mais importante é o Credo
de Dt 26,5-9”:[11]
Então declararás diante do Senhor, teu Deus: ‘Meu
pai era um arameu errante, que desceu ao Egito como migrante, com pouca gente (...) E
o Senhor nos fez sair do Egito com mão forte e com braço estendido... e nos
introduziu neste lugar, dando-nos esta terra, onde corre leite e mel’.[12]
Cada assembleia reunida para o culto faz memória da fidelidade de Deus no
passado, celebra a realização no presente e, na esperança, antecipa o futuro
escatológico e definitivo.[13] Lembrando-se
da aliança realizada em Sinai,
Israel recorda também as condições, isto é, as dez palavras, com a importante premissa: Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa
da escravidão (Ex 20,2). O povo responde: Poremos em prática tudo o que o Senhor falou e obedeceremos (Ex
24,7). Segue – pode-se dizer – a assinatura do contrato: Moisés pegou,
então, o sangue, aspergiu com ele o povo e disse: ‘Eis o sangue da aliança que
o Senhor fez conosco confirmando todas estas palavras’ (Ex 24,8).
O momento ritual,
sacrifício de aliança, tem um valor
puramente simbólico enquanto expressa, de forma plástica, a iniciativa gratuita
de Deus e o empenho ou resposta livre do povo. O sangue, símbolo de vida,
sanciona aquela união vital entre os dois membros do pacto que se fundamenta na
ação gratuita e eficaz de Deus, à qual corresponde a acolhida e obediência do
povo”.[14]
A celebração da Páscoa - momento
fundamental da História da Salvação - marca a vida espiritual dos membros do
povo de Deus. O memorial pascal acompanha a vida do povo e como
absorve todas as ações litúrgicas que celebram essa história.
Nessa
“experiência pascal”, o israelita recorda as maravilhas que Deus operou em seu
favor, e volta a pô-las sob os olhos de Deus para que também ele “recorde”
aquilo que Ele mesmo fez pela salvação do povo. (...) Assim, em virtude do
próprio fato de Deus se recordar, cria-se uma nova situação que é de ajuda
eficaz para o homem. Com efeito, em Deus, a recordação equivale a atuar
novamente de maneira eficaz e concreta.[15]
1.3 Outros elementos
na vida do povo de Israel
Elemento muito
importante na vida, não só religiosa, do povo de Israel é a circuncisão,
sinal de pertença ao povo da aliança. Os rabinos ensinavam que os filhos de
Israel, no Egito, eram incircuncisos; chegando à Terra Prometida, para celebrar
a Páscoa, precisaram se fazer circuncidar. Assim, o sangue do cordeiro e da
circuncisão se misturaram e formaram um único sangue. “Por isso, todas as vezes
que corre o sangue da circuncisão, pelo qual um novo homem é introduzido no
povo de Deus, não só Israel, mas também Deus se lembra da Páscoa e da Aliança
que com ela constitui um único evento”.[16]
A memória da Pascoa acontece, ainda,
com o sacrifício do cordeiro
oferecido, pela manhã e à noite, no templo. Quando Israel, destruído o templo,
não conseguiu mais realizar sacrifícios de animais, essa finalidade é vivida
nas sinagogas com a oração do Shemah[17] e do Shemoneh Esreh[18],
o sacrifício de louvor, que coincide
no horário com os sacrifícios do templo.
Clara relação com a Páscoa, tem a
celebração do sábado, memorial da criação e da aliança
(segundo o Código Sacerdotal). Na ceia festiva do sábado, as bênçãos, após a
terceira taça, destacam essa ligação. As três grandes festas hebraicas – das
semanas (Shavuot), das tendas
(Sukkot) e o Pesah Mazzot – foram postas em relação
com a Páscoa. “Assim a Páscoa, centro de toda a história da salvação, se
tornou, além de ser o fundamento de toda a legislação moral e social, também o
centro de toda a vida litúrgica do Povo de Deus”.[19] Um
texto da Mishná (que reproduz uma tradição antiga), afirma:
Em toda
época, todos devem considerar a si mesmos como se tivessem saído pessoalmente
do Egito... Por isso, somos obrigados a agradecer, a adorar, a louvar e
glorificar... aquele que fez a nós e aos nossos pais todas estas maravilhas e
nos conduziu fora da escravidão rumo à liberdade; por isso, devemos dizer,
diante dele, aleluia (Pes. X, 5).[20]
Em seguida, cantam-se os Salmos de
louvor (113-114), o hallel.
É impossível resumir tantos e
complexos elementos que dão ao rito pascal riqueza de conteúdo e de símbolos: o
pão ázimo, as ervas amargas, o cordeiro imolado no templo e consumido nas
casas, as copas de vinho. Tudo isso para favorecer que cada membro do povo de
Deus viva a salvação, mediante o anúncio e o louvor-agradecimento, na espera da
plenitude final. Somente um povo que faz hoje experiência da libertação e
espera sua realização última, pode celebrar a Páscoa. Quem não é circuncidado e
não pertence à comunidade dos libertados, é excluído desse convívio pascal.[21]
Portanto, para os judeus, a Páscoa é festa que
encerra em si três dimensões:
a) Uma realidade passada: a libertação do Egito; Israel se torna o Povo de Deus;
b)
uma realidade presente: renovação ritual do evento
passado; desse modo, todo israelita toma consciência de ter sido pessoalmente libertado pelo Senhor;
c) uma realidade escatológica: Páscoa é o símbolo da libertação futura e definitiva
que se realizará numa nova Páscoa, no fim do mundo presente, começo dos novos céus e da nova terra.
2. A PÁSCOA
DE CRISTO
Tenho desejado ardentemente comer convosco
esta ceia pascal, antes de padecer (Lc 22,15)
Ao celebrar a
Páscoa com seus discípulos, Jesus fazia memória
da longa história de fé e de esperança do seu povo. Todavia, algo
profundamente novo aconteceu naquela Ceia de despedida. Muitas perguntas surgem
a esse respeito: quando e como aconteceu a Ceia de Jesus antes de sua morte? Que
sentido Ele deu aos gestos e às palavras que a Tradição guardou e nos entregou
pela memória de Paulo e dos Evangelhos? O que Jesus desejava ou pedia que os
seus seguidores fizessem quando disse: Fazei
isto em memória de mim (Lc 22,19; 1Cor 11,24)? Essas perguntas, queremos abordar.
2.1 O valor
da comensalidade na cultura hebraica e na vida de Jesus e seus discípulos
Para entrarmos, pouco a pouco, na
compreensão do mistério eucarístico,
contemplemos Jesus que partilha a mesa com tantas pessoas: em casa de amigos,
Lázaro, Marta, Maria, Levi – Mateus; ou do fariseu Simão, do publicano Zaqueu.
Pela familiaridade com todas as categorias de povo, Jesus é acusado de acolher os pecadores e comer com eles
(Lc 15,2); de ser um comilão e beberrão, amigo
de publicanos e de pecadores (Mt 11,19; Lc 7,34). Com esse seu hábito,
Jesus marcou a sensibilidade dos discípulos. Pedro manifesta orgulho recordando
que ele e os demais discípulos comeram e
beberam com o Ressuscitado (At 10,41). Jesus usa a imagem de um banquete
festivo para falar do Reino ao qual Deus convida (Lc 14,15-24;15, 23-24),
prelúdio do Reino que vem, e que já está entre nós, aberto a todos. Os relatos (seis
vezes!) de multiplicação dos pães têm
uma linguagem claramente eucarística: tomou, abençoou, partiu, deu de comer. Pode-se afirmar que:
A abundante comensalidade de Jesus, os sinais da
multiplicação dos pães e peixes, o milagre da conversão da água em vinho, os
anúncios do reino na categoria do banquete festivo, as refeições com Jesus
ressuscitado... juntamente com a experiência da última ceia de despedida, com
seus gestos e palavras sobre o pão e o vinho e a doação de Jesus como comida,
certamente estão à base da compreensão eucarística dos cristãos.[22]
A comensalidade de Jesus favorece a compreensão
do valor antropológico do comer juntos.
Acima de tudo, porque a comida é indispensável para viver, é o contato vital
com o cosmos e seus bens. A Eucaristia, portanto, lança suas raízes nessa
dimensão existencial. Além disso, o fato de comer
com os outros, é símbolo de partilha, amizade, comunicação, acolhida,
hospitalidade, festa. Nas religiões, a refeição tem dimensão sagrada. No mundo
bíblico, feitas “diante de Deus” (Ex 24,11), as refeições expressam gratidão e
se tornam sinal de comunhão e aliança com Deus, tendo também uma coloração escatológica (cf. Is 25,6s;
55,1s; Pr 9,1-6). Com certeza, a Eucaristia vai além do que pode expressar um
gesto humano ou religioso, e Cristo lhe deu sentido e conteúdo próprios; mas
essa dimensão, intensamente humana, ajuda a compreender os muitos significados
da Eucaristia. Comer com (grego synesthiein) se torna expressão
privilegiada para a transmissão da mensagem evangélica.[23]
Os estudos históricos nos informam que
as refeições de grupos religiosos hebreus poderiam ter inspirado o cerimonial
da Eucaristia. Trata-se das refeições de haburá,
confrarias religiosas ou de caridade de discípulos de um mesmo mestre. Essas
celebrações seguiam este roteiro: introdução, abluções, oração de quem preside,
pão partido e partilhado; oração de cada um pelo vinho e os alimentos; abluções
finais, enquanto o presidente da mesa pega o cálice de bênção e dirige a Deus uma longa oração, introduzida por
breve diálogo. A oração se divide em três partes: ação de graças pelos bens da
criação, ação de graças pelo Êxodo e a Aliança, pedido de assistência e
proteção divina. O cálice circula de boca em boca e os fiéis se separam.
Observa-se que as mais antigas orações litúrgicas (Didaquê, Justino, Tradição
Apostólica) são parecidas com essas orações da haburá.[24]
2.2 Memória dos
textos bíblicos do Novo Testamento
Os textos bíblicos que falam da Eucaristia
podem ser reunidos em três grupos:
a) Os evangelhos sinóticos (Mt 26,26-28; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20).
Neles, a narração da Ceia é apresentada só com pequenas – significativas –
diferenças entre os três evangelistas. A análise exegética desses evangelhos confirma a existência de um fato
histórico que fundamenta a narrativa, mas revela, ao mesmo tempo, clara formulação ritual. Os evangelistas contam
a última Ceia de Jesus com uma fórmula litúrgico-ritual. Quando os
evangelhos receberam a última redação, a comunidade dos fiéis já lembrava a Ceia do Senhor com palavras litúrgicas.
b) A carta de Paulo aos cristãos de Corinto
(1Cor 11,23-26) se aproxima dos sinóticos, sobretudo de Lucas. O Apóstolo
contesta a maneira dos cristãos daquela comunidade celebrar a Ceia do Senhor;[25]
denuncia a perda do sentido originário dessa Ceia! Com isso, Paulo manifesta também a existência de uma praxe
eclesial fundamentada historicamente, da qual dá a fórmula litúrgica de sua realização.
Recorda que se trata da tradição que
ele recebeu do Senhor. O
acontecimento histórico da Ceia do Senhor
já faz parte da praxe celebrativa. Desde a primeira época apostólica, essa Ceia do Senhor é a nova liturgia dos discípulos de Jesus.
c) Destacamos, ainda, vários
textos em que se fala de um rito próprio da comunidade cristã, chamado de fração
do pão, expressão que se encontra num contexto ritual, como escreve
Paulo: O pão que partimos, não é comunhão
com o corpo de Cristo? (1Cor 10,16). O Apóstolo está evidenciando a
diferença e a oposição entre ritos cristãos e pagãos. Em Atos, o termo retorna
em 2,42: Eles eram perseverantes ... na
fração do pão; 2,46: perseverantes e
bem unidos... partiam o pão pelas casas e tomavam a refeição com alegria e
simplicidade de coração. Em At 20,7.11, o contexto é de uma celebração da
Eucaristia: é o primeiro dia da semana,
os discípulos do Senhor estão reunidos
para a fração do pão, na sala superior de uma casa, Paulo partiu o pão, comeu e ficou falando até de
madrugada. As palavras partir o pão (grego: ????????????????; latim fractio panis) retornam em Lc 24,30.35,
para manifestar a presença do Ressuscitado no encontro com os dois discípulos
de Emaús: depois que se pôs à mesa com
eles, tomou o pão, pronunciou a bênção, partiu-o e deu a eles; e 24,35: Então os dois relataram o que aconteceu no
caminho, e como o haviam reconhecido ao partir o pão. Observemos que a expressão partir
o pão é de clara marca hebraica; indica o rito com o qual os hebreus
iniciavam a refeição e, de modo particular, o primeiro gesto ritual com o qual
começava a ceia pascal.[26] As
palavras partir o pão tornaram-se,
desde o início da Igreja, uma fórmula para indicar a celebração cristã da nova
Páscoa de Cristo. Portanto,
d) Além dessas páginas, na
Sagrada Escritura, encontramos outros
textos importantes para compreender como a Igreja primitiva entendia e
vivia a Eucaristia. Na Primeira Carta
de Pedro (1,18-19), lê-se: Fostes
resgatados... pelo precioso sangue de Cristo, cordeiro sem defeito e sem
mancha. A carta – de caráter batismal – desenvolve a tipologia da Páscoa do
Êxodo: como estrangeiros (1,1), os cristãos, assim como outrora os israelitas,
são libertados da escravidão mediante o sangue do cordeiro (1,18-19); cingidos
os rins (1,13), passam das trevas para a luz de Deus (2,9); convertem-se da
idolatria para se tornarem sacerdócio régio e povo
eleito (2,9). Todas referências à primeira salvação pascal.
Outro escrito que recebeu forte
influência do AT é a Carta aos Hebreus.
A obra de Cristo, observa o autor, tem clara referência ao sacrifício da Aliança
que aconteceu ao Sinai (9,20; 10,29.). Por isso, compara o sacrifício de Cristo
ao do kippur (9,12-28; 13,11-12), mas
recorre também à tipologia da páscoa. Jesus não é apenas o sumo sacerdote, mas,
como mediador da nova aliança (8,6; 12,24) e guia para a glória e a salvação
(2,10), é o novo Moisés (3,3-6) que conduz a Igreja ao repouso (3,7-4,13), ao
serviço do Deus vivo (9,14) e à Sião dos últimos tempos (12,22). Seu sangue é o
sangue da páscoa: realiza a libertação, é comparado ao sangue de Abel, o justo.[27]
A obra
joanina, enfim, mereceria detalhada análise. João coloca sob o sinal da
Páscoa “todo o mistério de Cristo na sua realização histórica, no seu
prolongamento sacramental, na sua prefiguração tipológica”.[28]
No evangelho de João, encontramos três páscoas dos judeus: a) na
purificação do templo (2,13); b) na multiplicação dos pães (6,1-15) e no
discurso eucarístico (6,26-71); c) enfim, a páscoa da morte (11,55; 12,1; 13,1;
19,14). Como nos sinóticos, Jesus escolhe morrer por ocasião da páscoa; para
ele, a morte não é só páscoa-passagem deste mundo ao Pai; Jesus é o verdadeiro
Cordeiro que morre na cruz, na mesma hora em que, no templo vizinho, são
imolados os cordeiros para a ceia pascal; a ele, como prescrevia a lei (cf. Ex
12,46), não é quebrado nenhum osso (cf. Jo 19,33-36). Do lado dele, morto, saiu
sangue e água (19,34), clara alusão
ao Batismo e à Eucaristia. Jesus é o Cordeiro
pascal que recapitula em si mesmo e realiza as promessas do AT. O Apocalipse apresenta o Cordeiro imolado
– crucificado e ressuscitado – centro da liturgia celeste que “reflete e
espelha a liturgia eucarística nas comunidades cristãs da Ásia Menor. (...) O
caráter pascal do Cordeiro e da liturgia é confirmado pela tipologia do Êxodo,
que se acha na base do Apocalipse: os males do fim dos tempos repetem as pragas
do Egito”.[29]
2.3 Anotações
teológicas
O
teólogo que pretenda compreender a Eucaristia de forma correta, deve acolher os
dados bíblicos procurando o que as testemunhas da primeira hora entenderam do
que Jesus fez na Ceia derradeira, na
qual Ele entregou à sua Comunidade
messiânica o rito da nova Páscoa; não
mais a libertação do Egito, mas a libertação
do mal. O sangue é derramado para a remissão
dos pecados, numa aliança de amor,
sinal perene do amor de Deus, visível no dom-de-si que Jesus realizou com sua
morte na Cruz. O sacrifício de Cristo
contesta e supera toda visão sacrifical da primeira Aliança, tornando-se Cristo
mesmo o Mediador. Para compreender a Eucaristia, devemos observar o rito pascal, com sua longa história, e a
Páscoa real da morte do Senhor. A memória litúrgica se fundamenta nesse
acontecimento passado. Por isso, pode-se afirmar que, na celebração
eucarística, o sacrifício pascal de Cristo é atualizado em sua realidade, é
verdadeira libertação do pecado e verdadeira aliança do Pai. Resumo a complexa
questão, com as palavras de dois eminentes teólogos, Aldazábal e Marsili:
Provavelmente a chave de memorial da páscoa de Jesus será a
melhor para abarcar os dados do NT. Quando aquela comunidade se reunia para a
fração do pão, tinha consciência de que fazia o memorial da entrega pascal de
Cristo (...) convencida de que, em cada Eucaristia, acontecem duas coisas
fundamentais: 1) a união vertical com Cristo que a faz partícipe de sua própria
vida escatológica e dos frutos salvadores de sua cruz (...); 2) e também que a
Eucaristia vai criando a união fraterna da comunidade eclesial se é celebrada a
partir da caridade e da fé. Porque comemos o corpo eucarístico de Cristo, vamos
nos convertendo em seu corpo eclesial.[30]
A Missa
(é) como a celebração ritual
sacramental da Páscoa de Cristo, (...) o sacramento
do sacrifício de Cristo; (...) nesta está
diretamente presente o sacrifício da cruz, visto na sua íntima natureza de acontecimento de salvação e não nos
componentes exteriores de tempo e de lugar, substituídos agora pelo sacramento. (...) A Eucaristia é sacrifício enquanto é sacrifício relativo ao já acontecido sacrifício da cruz. (...) Disso se deduz
que na Missa não se multiplica, nem se renova, nem se reproduz ‘a oferta
ocorrida uma vez por todas’ na morte de Cristo, mas aquela morte sacrifical de
então (...) é tornada presente em cada tempo e lugar. Portanto, toda celebração eucarística
é presença real de Cristo que se oferece
na cruz.[31]
3. A REFORMA
PROTESTANTE E O CONCÍLIO DE TRENTO
Nossa maneira de pensar está de acordo
com a Eucaristia
e a Eucaristia confirma nossa
doutrina...
Assim como o pão que vem da terra,
ao receber a invocação de Deus,
já não é pão comum, mas a Eucaristia,
feita de dois elementos, o terreno e o
celeste, do mesmo modo
os nossos corpos, por receberem a
Eucaristia, já não são corruptíveis
por terem a esperança da ressurreição
(S. Irineu de
Lião: Contra as heresias 4,18,5)
Depois
dessa sumária reflexão teológica sobre Eucaristia, abrimos, com essenciais
comentários, uma página a um tempo dolorosa e importante. Refiro-me à Reforma Protestante, do século XVI, e à
resposta do Concílio de Trento
(1545-1563). Os ensinamentos desse Concílio refletem a teologia e a praxe
medievais, responderam às críticas da Reforma Protestante e, apesar das
limitações, permanecem importante referencial para a compreensão e a vivência
da Eucaristia na Igreja Católica.
3.1 O
contexto das Reformas, protestante e católica
Para
compreender a contestação dos Reformadores (refiro-me, especialmente, a Lutero,
Zwínglio e Calvino), é preciso conhecer não só a teologia da época, mas também,
a realidade eclesial e, no que se refere à celebração da missa, os abusos que aconteciam.
Esses, com outras complexas motivações, infelizmente, ofereceram motivos à
contestação pelo agir da Igreja in capite
et in membris. “No século XVI, a situação da liturgia no Ocidente é
lamentável. (...) Os ritos e as cerimônias se realizam sem sentido pastoral e
acompanhados de uma série de abusos e superstições”.[32] “Na
prática, a comunhão era reduzida ao mínimo indispensável. (...) Enquanto a
devoção do povo ia-se polarizando unicamente na audiência do sacrifício da missa, esquecendo-se quase totalmente da
comunhão sacramental, a teologia ia
se concentrando no sacramento, e só
tangencialmente se ocupava do sacrifício”.[33]
Nos
primeiros séculos do II milênio, pouco a pouco, tinha-se perdido a riqueza
teológica da Patrística. O padre Giraudo resume a explicação histórica dos
teólogos e liturgistas da época: “O termo ‘memória’, não tendo mais nada em
comum com a noção bíblico-patrística de ‘memorial’, soa aqui simplesmente a
‘lembrança’ e ‘imaginação subjetiva’”; “Na Idade Média – escreve Herman Schmidt
– a missa se torna um drama, um espetáculo, mais: uma epifania do Senhor. O
povo, instruído pelos alegoristas, divisava a vida de Cristo em todo aparato
exterior da missa. (...) Por isso, a atenção dos alegoristas se concentrava nos
ritos existentes da consagração. (...) Para aumentar o desejo do povo de ver a
hóstia, muitos sacerdotes, às palavras tomou
o pão, elevavam a hóstia mais alto”.[34]
O empobrecimento da reflexão teológica levou a enfraquecer
a compreensão e vivência do mistério pascal de Cristo. Teólogos e liturgistas
destacaram, sim, um elemento importante – a consagração –, mas
“fazendo descer sobre todos os outros elementos aquele halo indistinto de visão
fragmentária e de desinteresse que os envolve ainda hoje aos olhos da maioria”.[35]
A
missa era procurada e vivida como uma devoção,
“semelhante à devoção aos santos”;
“vista não como meio de comunhão com
Cristo, mas como meio infalível de
intercessão para a obtenção de favores”.[36]
Entre os abusos da época, que tantos motivos deram à reação protestante, está a
celebração da missa “pela metade” ou missa
seca. Para ludibriar a lei canônica que proibia a celebração de mais de uma
missa ao dia, fazia-se somente a celebração da Liturgia da Palavra e a oração
do Pai-nosso, com seu embolismo, a oração da paz e o Agnus Dei. Para enganar melhor o povo, no rito da elevação,
levantavam-se as hóstias do sacrário ou uma relíquia de um santo. Chegou-se,
desse modo, à “missa bi-tri-quadri-quinquifaciada”.
Escreve
Marsili:
Assim se apresentava na praxe celebrativa comum, ainda na época do Concílio de Trento,
aquilo que se continuava a chamar de santo
sacrifício da missa; a missa tinha perdido seu real valor, o importante era
que a missa fosse dita ou cantada ou – como se dizia - lida. O sentido comunitário da
celebração quase sempre se perdia, ou, pelo menos, não era levado em conta. O
clero, em vez de corrigir esta falsa devoção, na maioria dos casos superstição,
muitas vezes a usou para auferir vantagens materiais. E, infelizmente, sabemos
– não por último pela reação dos protestantes – quanto o ‘dinheiro’ pesou na
Igreja e como dobrou a Liturgia ao seu capricho.[37]
Os
historiadores observam que muito contribuiu, também, o amadurecer da mudança de
sensibilidade eclesial: a “tendência a substituir o indivíduo à comunidade”,
não só na Igreja dos “papistas” (os católicos), mas dos “suíços” (os reformadores).[38] Esse
tempo foi de grande dor e profundas feridas na Igreja toda; todavia, despertará
na Igreja Católica a busca de uma mais profunda reflexão e de intensa renovação.
3.2 Martinho
Lutero (1483-1556) e suas críticas
à Igreja e à Eucaristia
A
respeito da Eucaristia, Lutero, em seus primeiros escritos, segue a visão
tradicional da época, chamando-a de “suma e compêndio do Evangelho”, “presença
corporal de Cristo”, “o aqui para nós” da Encarnação; destaca o aspecto
“econômico”, para a remissão dos pecados; fala da presença “real-substancial”,
contra os reformadores suíços. Mas “tudo muda em seguida, a partir do escrito: De captivitate Babylonica ecclesiae (1520)
e De abroganda Missa privata (1522);
o último fortíssimo grito ressoa nos Artigos
de Schmalkalden (1537-1538)”.[39] Contesta
à Igreja Católica a tríplice escravidão:
a) A presidência reservada a um ministro ordenado e o fato da recusa do cálice aos leigos. Lutero
destaca que a Eucaristia tem sentido convivial e defende o sacerdócio comum de
todos os fiéis.
b)
A doutrina da transubstanciação, isto
é, a permanência dos acidentes, mas com a mudança da substância. Lutero se afasta da visão filosófica tradicional da
época e lê a presença de Jesus na Eucaristia como evento convivial, não como realidade permanente à qual atribuir
devoção e culto; e chama a Eucaristia de sagrada
ceia.
c) A missa ser considerada obra boa e sacrifício: a Eucaristia, diz, é dom de Deus ao homem, dom que se
recebe e não oferenda do homem a Deus feita por meio de um ministro. Escreve
Lutero:
O terceiro cativeiro (servidão) do mesmo
sacramento [= da eucaristia] consiste naquele abuso, de longe o mais ímpio, que
fez com que hoje na igreja não haja quase nada que seja recebido e acolhido com
convicção [do que isto], que a missa é uma boa
obra e um sacrifício. Por sua vez
esse abuso provocou a inundação de uma infinidade de outros abusos, a ponto de,
extinta completamente a fé sacramental, terem feito do divino sacramento um
verdadeiro mercado, um negócio de taberna e uma espécie de contrato lucrativo.[40]
Sendo
assim, Lutero ensina que Cristo instituiu a Eucaristia como sacramento e não como sacrifício para ele nos dar a sua graça,
não para nós oferecermos a ele uma
nossa obra boa; acrescenta: “Nós que
deveríamos ser gratos pelo dom recebido, orgulhosamente transformamos em oferta
aquilo que apenas deveríamos receber. Damos a Deus como obra nossa, aquilo que
é dado a nós como dom” (De captivitate,
Werke 523).[41]
Sem a pretensão de resumir a complexa doutrina de Lutero,
considero algumas escolhas presentes em seus escritos, que manifestam um
distanciamento crescente da doutrina católica. Junto com a rejeição do
sacerdócio ministerial, Lutero corta partes do Cânon Romano (porque nele recebe
destaque demais o sacrifício!).
Depois do prefácio, passa ao relato institucional (dando também indicação dos
gestos que devem acompanhar as palavras). Em seguida, realiza uma ulterior
redução, para deixar só o relato institucional,
e a paráfrase do ‘Pai nosso’. Permanece o rito da elevação “provisoriamente mantido
para não escandalizar os fracos”; a Eucaristia é distribuída logo depois da
consagração, antes de abençoar o cálice. Para receber a comunhão, homens e
mulheres separados, como também devem ficar em lugares distintos.[42]
Com suas orientações celebrativas, Lutero tem a convicção de que “a
identificação da celebração com a última ceia é agora total. De fato, os dois
momentos tradicionalmente distintos da celebração eucarística – a anáfora e a
comunhão – estão agora fundidos numa única e mesma ação”.[43]
Enfim, Lutero afirma que devem ser abolidas as missas privadas – onde comunga só o celebrante e não o povo – e julga
errada a aplicação da missa para vivos e falecidos.
3.3 O
Concílio de Trento
Os
desafios postos ao Concílio que se reuniu em Trento (1545) eram grandes. Nele,
o assunto Eucaristia foi amplamente enfrentado em três densas sessões (nos anos
de 1551 – outubro, e de 1562 – julho e setembro). As questões mais debatidas
foram ao redor da presença real, do
sentido do termo sacrifício dado à
missa, e da comunhão também com o cálice por parte dos fiéis. Em nove
capítulos e nove cânones, o Concílio propôs uma sólida reflexão teológica, com
valores e limites históricos, mesmo se “não traz nada de particularmente novo
sobre o ‘sacramento da Eucaristia’. Ele foi a testemunha de
uma ininterrupta tradição da fé”.[44] Todavia,
Trento não conseguiu superar as abstrações da teologia escolástica e apresentar,
de maneira renovada, o perene ensinamento eclesial, tornando-o capaz de falar
ao espírito e à mentalidade dos novos tempos.
Marsili
observa: “De um ponto de vista doutrinal, todavia, pode-se dizer que as
definições tridentinas expuseram a fé da Igreja com equilíbrio, clareza e
autoridade, seguindo a linguagem teológica medieval, em estilo apologético,
devendo responder às contestações dos Reformadores”[45]. Em
suas declarações, além de seguir a doutrina da Tradição, Trento inspirou-se no
que os dois concílios anteriores, de Constança e Florença[46],
tinham decidido. Os primeiros três Cânones sintetizam a doutrina sobre a
presença verdadeira, real e substancial
e sobre a transubstanciação.
Limito-me
a propor essenciais reflexões a respeito de alguns pontos que o Concílio
enfrentou, num debate amplo, complexo, polêmico, desafiador.
a) A presença
do Senhor na Eucaristia. A doutrina
da presença real do Senhor na
Eucaristia era bem firme na vida da Igreja desde os séculos anteriores. As
controvérsias do passado (Berengário) tinham motivado o florescer do culto à
Eucaristia, mas com uma escassa participação à comunhão. Já o Concílio
Lateranense IV (1215) tinha definido o preceito da Confissão anual e da Comunhão
“ao menos na Páscoa”. A adoração e a contemplação eram consideradas um
equivalente da comunhão: ver a hóstia
(Jesu quem velatum nunc aspicio – Ó Jesus, que agora velado vejo) era
já receber os frutos e os méritos da Eucaristia. O momento mais importante da
missa tinha-se tornado a elevação, o ver a hóstia, depois do milagre das palavras consecratórias. A
convicção da comunhão por visão e a
dureza da praxe penitencial tinham afastado o povo do comungar. A Eucaristia
era mais objeto de culto e a missa somente escutada.[47]
Lutero
e os demais Reformadores criticavam essa praxe eclesial, dando atenção à
finalidade convivial da Eucaristia,
como Ceia do Senhor, recebida sob as
duas espécies por parte de todos os fiéis. O Concílio reagiu, apresentando com fórmulas dogmáticas a fé da Igreja na presença verdadeira, real e substancial de
Jesus nas espécies eucarísticas. Decretou o Concílio:
Se alguém disser que, no sacrossanto
sacramento da eucaristia, permanece a substância do pão e do vinho juntamente
com o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e negar aquela admirável e singular mudança de toda
a substância do pão no corpo e de toda a substância do vinho no sangue,
permanecendo só as espécies do pão e do vinho – mudança que a Igreja católica
chama com muita propriedade transubstanciação – seja anátema (DS 1652).
O
termo transubstanciação pertencia à
doutrina da Igreja, desde o Concílio Lateranense IV (1215), e se fundamentava
no ensinamento de Santo Tomás e de outros mestres da Escolástica que “tinham
aclarado com exatidão as noções conexas de substância
entendida como realidade profunda do ser e de espécie ou acidente (entendidos
como o que é perceptível pelos sentidos)”.[48] Segundo
o Concílio, “as espécies eucarísticas não são só importantes: elas são
determinantes para os fins da realidade eucarística, já que a permanência da
presença real está condicionada à permanência das espécies. Não permanecendo as
espécies, tampouco a presença real permanece”.[49]
Continua,
para nós hoje, o questionamento: “Termos como substância, conversão, transubstanciação, contido sob as espécies são uma veste lógico-racional para a
mensagem da fé: é possível tudo isso ser expresso numa formulação com linguagem
cultural diversa da escolástica?”[50] “Em
tempos recentes, foram propostos os termos transignificação
e transfinalização. Outros ainda
poderão ser propostos como mais adequados, para a mente do homem de hoje, para
descrever esta mutação real e misteriosa ao mesmo tempo. Em todo o caso, nenhum
destes termos evitará os limites e a provisoriedade linguístico-filosófica do
termo transubstanciação”.[51] Giraudo
recorda o que escrevia o Catecismo
Tridentino: “Devem-se advertir os fiéis a não indagar com demasiada curiosidade de que modo possa acontecer
essa mutação, já que não a podemos compreender. (...) Com a fé se deve conhecer a realidade da coisa”.[52]
b) O caráter
sacrifical da celebração eucarística. O
Concílio afirma o valor sacrifical da
missa, em sua fundação e em seus efeitos. E propõe, de modo positivo, o que os
Reformadores contestavam. Estes os cânones:
[DS
1740] Esse nosso Deus e Senhor, embora se houvesse de oferecer de uma vez por
todas a Deus Pai sobre o altar da cruz por sua morte, para ali realizar uma
eterna redenção, contudo, porque seu sacerdócio não se devia extinguir pela
morte, para deixar à sua dileta esposa, a
Igreja um sacrifício visível – como a natureza dos homens exige -, pelo qual
fosse reapresentado aquele sacrifício cruento que se havia de realizar uma
única vez na cruz e seu memorial permanecesse até o final dos séculos e seu
poder salutar fosse aplicado para a remissão dos pecados que cometemos cada
dia, declarando-se constituído “sacerdote eterno segundo a ordem de
Melquisedec”, ofereceu a Deus Pai seu
corpo e sangue sob as espécies do pão e do vinho, e, sob os mesmos sinais, deu
aos apóstolos – que constituiu então sacerdotes do Novo testamento – para que o
recebessem e, com as palavras: “Fazei isto em meu memorial” etc., ordenou-lhes a eles e seus sucessores no
sacerdócio que o oferecessem, como a Igreja católica sempre entendeu e
ensinou..
[DS
1741] Instituiu a nova Páscoa, para ser
imolado pela Igreja através dos sacerdotes sob sinais visíveis em memorial de
sua passagem deste mundo ao Pai, quando pela efusão de seu sangue, nos
remiu e [nos] arrancou do poder das trevas e [nos] transportou a seu reino.
Conclui,
enfim, com os anátemas:
[DS
1751] Se alguém disser que na missa
não se oferece a Deus um sacrifício [no sentido] verdadeiro e próprio, ou que oferecer não é mais do que nos dar
Cristo por alimento, seja anátema.
[DS
1752] Se alguém disser que, por aquelas palavras: “Fazei isto em meu memorial”,
Cristo não instituiu os apóstolos
sacerdotes, ou não ordenou que eles e
os outros sacerdotes oferecessem seu corpo e sangue, seja anátema.
Para uma
compreensão mais detalhada e documentada desses cânones, recorro, ainda, aos
comentários de padre Giraudo.[53] Observemos
a riqueza dessas afirmações, fundamentadas biblicamente e que guardam o perene
ensinamento eclesial: o acontecimento pascal é perpetuado na história, expresso
por um rito que o reapresenta. Como a
Ceia é gesto profético que antecipa sacramentalmente
a Páscoa de Jesus, assim a missa é o memorial
que repete no sacramento o mesmo gesto de Jesus. Todavia, não aparece bem clara
a ligação entre a doutrina do sacramento e a do sacrifício eucarístico, a
unidade de dedicação pascal (o corpo
doado por nós) e o sinal sacramental. É o sacramento, em sua unidade de sinal
e de realidade, que atualiza para nós e é presença a nós do sacrifício da cruz: “sacramento
do sacrifício”. Outro limite, que acompanhará a história da Igreja, e
que Trento não julgou como grave carência, foi a ausência do povo na comunhão
eucarística. O mandamento do Senhor: Façam
isto em memória de mim foi visto, antes de tudo, como a ordem de fazer a oferta sacrifical e não de comungar. A missa permanecerá como
prática devocional, muitas vezes, solitária, em que o sacerdote celebra a missa
para expressar a sua piedade ou para atender aos pedidos dos fiéis que davam a
oferta para a celebração. O povo, também quando presente, continuará assistindo de forma passiva.[54]
c)
Finalidade expiatória do sacrifício
eucarístico. Outra questão enfrentada pelo Concílio refere-se ao caráter propiciatório ou sacrificatório da missa. O longo texto conciliar (DS 1743) destaca a
dupla relação que existe entre o sacrifício da missa e o sacrifício da cruz. No
que se refere à oferta e ao oferente, é o mesmo Cristo que “se ofereceu a si
mesmo de uma vez para sempre no altar da cruz de maneira cruenta, está contido
e incruentamente imolado”; conclui-se: este
sacrifício é verdadeiramente propiciatório. Sobressai, também, a diferença no “modo de se oferecer”: a
mesma vítima, “oferecendo-se agora pelo ministério dos sacerdotes”.
Os teólogos se
perguntam a respeito do sentido da palavra propiciatório.
Giraudo resume as diferentes possíveis interpretações. Uma primeira: “Tornar
Deus propício, isto é, dispô-lo a
aplicar a nós, em virtude do sacrifício da missa, os frutos do sacrifício da
cruz”. Ele, todavia, prefere uma segunda interpretação, ligada à origem da
palavra, próxima a expiar o pecado,
no sentido de “cancelar, tornar inoperante, tirar fora, purificar”; quando se
refere a Deus, “propitiare (propiciar)
ou placare (aplacar) tem o sentido de
tornar benévolo”.[55] O
Cânon conciliar escreve: “Aplacado por
esta oblação, o Senhor, concedendo a graça e o dom da penitência perdoa os
crimes e os pecados por grandes que sejam”. Essas palavras, que retornam em
numerosas preces do Missal Romano, hoje pedem clara explicação para que não apareça
um Deus que precisa do sacrifício do Filho para aplacar sua ira; concepção que acompanha as religiões e também o
Primeiro Testamento.[56]
Outros dois anátemas (DS 1753 e 1754), diretamente
ligados à teologia de Lutero: contra quem tomar a noção de sacrifício em
sentido puramente figurado e afirmar que a missa seja “somente um sacrifício de
louvor e ação de graças”, simples comemoração do sacrifício de Jesus, na cruz;
um segundo, contra quem recusar o íntimo nexo entre sacrifício da missa e
sacrifício da cruz.[57]
Concluo com a
observação de Neunheuser:
A obra
reformadora de Trento e dos papas é digna de altíssimo louvor: salvou a
liturgia da crise do século XVI. Todavia, é também uma obra limitada: enquanto
deu forma fixa à liturgia para superar a situação quase caótica daquela época,
também afastou-a da vida real, quase a ‘congelou’, constrangendo assim a
piedade dos fiéis a afastar-se dela para dirigir-se a formas de piedade popular
e devoção.[58]
3.4 De Trento
ao Vaticano II
Após
Trento, a teologia católica repete fielmente o que o Concílio tinha afirmado. Com
estilo apologético, apresentam-se, de maneira não unitária, os três temas
conciliares sobre Eucaristia: a presença sacramental, o sacrifício e a
comunhão. Resumindo, os teólogos protestantes evidenciavam, de maneira
simbólica e dinâmica, a Ceia de Jesus, a fé subjetiva, que se se manifesta na
participação convivial, a escuta da Palavra. A parte católica, fiel à longa
Tradição e à herança da Idade Média e dos ensinamentos do Concílio, continuou sustentando
a objetividade da presença, o culto eucarístico, o valor da adoração, as
disposições do fiel como condição necessária para a eficácia do sacramento.
O
Concílio não explicou o porquê de suas afirmações, “pois não estava em condições
de fazê-lo”.[59]
O teólogo liturgista Marsili, avaliando os decretos tridentinos, observa que, no
Decreto sobre a sagrada eucaristia (DS
1630-50), não há nenhuma alusão ao valor sacrifical da Eucaristia. O Concílio apresentou
só a distinção medieval entre sacramento
e sacrifício e, com a Doutrina sobre o sacrifício da missa, forneceu
também, os elementos para uma superação dessa distinção. Conclui:
Os pós-tridentinos não notaram isso e
continuaram mantendo a distinção, privilegiando naturalmente o sacramento e consequentemente olhando o sacrifício exclusivamente pela ótica sacrifical. (...) Com isso,
iniciou-se um novo problema, o da essência
do sacrifício da missa, devido à
obstinação em considerá-lo pela ótica
sacrifical. Colocando-nos numa ótica
sacramental, que vê a missa como sacramento
do sacrifício de Cristo, toda esta problemática desaparece, porque o
sacramento põe a presença deste determinado sacrifício do modo como ele se
realizou e com todos os seus componentes.
Acrescento
a clara observação do teólogo catequeta Gopegui:
Fica patente o beco sem saída em que adentram
a teologia e a piedade popular quando pretendem explicar o mistério por algo
exterior ao próprio mistério. Deixando-nos guiar pela própria celebração do
Mistério, compreendemos que a Eucaristia é sacrifício por ser memorial do sacrifício de Cristo, sacramento
do sacrifício do Cristo. Antes de explicar isto, será oportuno interrogar à
tradição da Palavra divina o que se entende por sacrifício do Cristo.[60]
Nos séculos que se sucederam a Trento, os teólogos
apresentaram um “emaranhado inextricável de teorias” (seria demorado
resumi-las).[61] Depois
de apresentar diferentes teorias, Giraudo cita dois autores do século XX: Luís Bouyer e Max Thurian.[62]
Neles, reconhece “o comum interesse que dedicam à noção de memorial” e a “conjunção que os dois autores fazem entre memorial e sacrifício”. Cita de Thurian:
“Só na perspectiva bíblica do memorial é possível falar da Eucaristia como de
um sacrifício”; e Bouyer: “... o memorial
se torna, portanto, uma forma superior de sacrifício. Por fim, a terceira
constante é dada pela conjunção de memorial,
sacrifício e banquete”. Conclui Giraudo: “Cremos poder identificar o
principal mérito dos dois autores em ter reconduzido a problemática sacrifical
da eucaristia a suas origens bíblico-judaicas e, além disso, em ter sublinhado
com insistência a importância do memorial bíblico, entendendo como penhor da
contínua presença salvífica de Deus na história”.[63]
Considerar
a celebração da Eucaristia numa ótica
sacramental é o modo mais significativo e o único que, fiel aos conteúdos
mais profundos de Trento, favorece melhor compreensão do que fazemos na
celebração.
3.5
Observações de hermenêutica[64]
Vimos que, no final do primeiro e
início do segundo milênio, a atenção sobre a Eucaristia se concentrou na consagração; celebravam-se missas sem
que a assembleia recebesse a comunhão e se procurava o sentido da Eucaristia
sem referência ao rito. Em geral, realizavam-se os ritos dos sacramentos
guiados somente pelo intelecto, sem prestar atenção aos sentidos, fora do
espaço e do tempo. Assim, as três dimensões de sacrifício, sacramento e comunhão, próprias da Eucaristia,
procediam separadas.
Por isso, foi preciso reler a tradição
eucarística com categorias novas, procurar uma nova hermenêutica, elaborar uma teologia do rito e da ação ritual
considerada qual forma do sacramento.
Nos decênios que precederam e acompanharam a reforma litúrgica do Vaticano II,
a lex orandi foi reconhecida, com
maior clareza, como locus theologicus.
Todo o rito da missa – e não só a consagração – começou a ser visto como
experiência do mistério pascal, recuperando a dimensão epiclética e a participação na comunhão
eucarística. A reflexão teológica entendeu que, para definir o sentido
teológico da Eucaristia, é preciso considerar o rito mesmo, a “contingência
ritual”; o conteúdo doutrinal, passa pela “inteligência ritual”.
Para entrar no
“saber ritual” da Eucaristia – em suas dimensões dogmática, disciplinar,
histórica e litúrgica – pedem-se outros saberes que favoreçam uma experiência
capaz de envolver a totalidade da pessoa e das pessoas que celebram o mistério pascal do Senhor. As ações
rituais são síntese de interioridade e exterioridade, de pessoal e comunitário. O acesso ao
sacramento não acontece de maneira imediata,
mas através da mediação das formas
fundamentais da experiência que a liturgia proporciona.
Na história do Movimento litúrgico do
século 20, essa hermenêutica amadureceu nos anos 30-40, sobretudo pelo debate
entre Romano Guardini e Joseph Jungmann a respeito da forma fundamental (Grundgestalt) da Eucaristia.[65]
Na teologia do passado – assumida
oficialmente pelo Concílio de Florença (1439) – a forma, entendida como causa
formal, era o elemento do sacramento que unia o ato da Igreja à ação do
Senhor (e agia junto com a matéria -
causa material, e o ministro - causa eficiente). Com a introdução da forma
ritual (que Guardini a identificava na ceia, enquanto Jungmann na oração
eucarística), é introduzido um novo
lugar hermenêutico.
Para responder à pergunta: “Onde e
como se encontram e se reconhecem o Corpo de Cristo sacramental e o Corpo de
Cristo eclesial”, precisava uma resposta mais articulada.
De maneira resumida, podemos afirmar que, ao
longo da história, sucederam-se três
modalidades de reflexão a respeito da Eucaristia:
a) Uma primeira modalidade, caracterizada pela busca da essência
(Wesen)
do sacramento: através de uma aproximação sistemática,
buscava definir a forma essencial da Eucaristia com o conceito, a ideia (êidos, no grego, forma, em latim); serviu, na escolástica, para explicar o sentido da Eucaristia, como acontece a presença do
Senhor entre nós, e nossa “comunhão” com Ele. No centro do saber, está o ens, não a actio.
b)
Outro
modo
destaca as formas históricas (Gestalt) em que, ao longo do tempo, a Eucaristia foi celebrada
e como a comunidade cristã viveu a “missa”, acolheu a presença do Senhor em seu
meio. Ao longo da história, a forma assumiu
formas diferentes, onde a praxe
ritual e a reflexão teórica interagem.
c) O terceiro perfil refere-se à execução da celebração (Vollzug), isto é, olha a forma como manifestação exterior,
visível, sensível (a morphê dos
gregos) com que a ação ritual é realizada, observada, participada. Esse perfil ritual – que entrou na reflexão
há pouco mais de um século – numa linguagem renovada, está envolvendo a
consciência pastoral e espiritual da Igreja. Trata-se de uma aproximação litúrgica que destaca a Eucaristia como ação
ritual, sagrada, introduz a linguagem
simbólica, não verbal, a experiência corpórea, comunitária do sacramento,
alicerça uma comunhão a-ritual com o corpo de Cristo sacramental e eclesial,
valorizando totalmente a forma ritual
como a forma histórica da Eucaristia. Essa modalidade de leitura da “celebração
ritual” é feita a partir da análise dos textos litúrgicos e de uma nova
reflexão antropológica que evidencia o valor das “práticas religiosas”
(a refeição, a palavra, o reunir-se, a iniciação, a cura, a relação afetiva e
social, o poder). Tudo isso encontra confirmação nas palavras de SC 48: id [eucharisticum mysterium] bene
inteligentes per ritos et preces = compreendendo bem [o mistério eucarístico]
por
meio dos ritos e das orações.
Com isso, não se diminui a importância do conhecimento sistemático, mas não se o isola da história e do conhecimento
simbólico.
4. O CONCÍLIO
VATICANO II
Com certeza, quando o nosso povo tiver compreendido
o que é a missa
e a tiver sentido não mais como uma ação
incompreensível
e quase mágica do sacerdote, mas como algo
próprio...,
será fácil persuadi-lo da obrigação de cumprir
o preceito:
mais do que um preceito, a missa festiva se
tornará uma necessidade
do espírito, como é, para o corpo, o alimento
cotidiano
(Card. G. Lercaro: A messa, figlioli,
1957)
Revisitamos brevemente a longa história que, através dos
séculos, nos recordou a aliança de
Deus com o seu povo; fizemos memória
do evento fundante de nossa fé, isto é, do mistério
pascal da vida, morte, ressurreição, ascensão do Senhor e dom do Espírito. Saboreamos
o sentido desse mistério de amor que Jesus deixou à sua Igreja. Recordamos as
tantas contradições e infidelidades de seus discípulos e discípulas ao longo
dos séculos, reconhecendo, também, as fadigas para compreender e viver o sublime
dom do amor do Senhor. Chegando aos nossos dias, queremos considerar a Eucaristia e o mistério de Cristo na reflexão do grande evento da nossa história
eclesial: o Concílio Vaticano II.
Uma compreensão melhor exigiria a contextualização do que aconteceu, nos
últimos séculos, a respeito do nosso tema. Os movimentos culturais que marcaram
a Europa, sobretudo iluminismo e romanticismo, e influenciaram a vivência
litúrgica, positiva e negativamente.[66]
Os Papas também entraram na busca de renovação eclesial: Pio X, num documento (Tra le sollecitudini) sobre a música sacra, afirmava: “O verdadeiro
espírito cristão consiste na participação ativa dos fiéis nos mistérios sagrados”;
o Papa Pio XII, com a importante Carta Encíclica Mediator Dei (1947), reconheceu os esforços do Movimento Litúrgico
e mandou mensagem aos participantes do Congresso Internacional de Pastoral
Litúrgica de Assis (1956), em que diz: o Movimento Litúrgico “surge como sinal
das disposições providenciais de Deus, para o tempo presente, como passagem do
Espírito Santo, por sua Igreja, para aproximar os homens dos mistérios da fé e
das riquezas da graça que provêm da participação ativa dos fiéis na vida
litúrgica”; de fato, “Sessenta anos do Movimento litúrgico não haviam passado
em vão”.[67]
No Vaticano II,
começando pela Constituição sobre liturgia Sacrosanctum
Concilium (SC - 1963), à liturgia é dado um sólido embasamento teológico.
“O grande mérito do Concílio foi ter posto a liturgia dentro duma perspectiva
eminentemente teológica e pastoral. Superou-se uma visão exclusivamente
estética e ritualista da liturgia para favorecer sua compreensão teológica”.[68]
Também se não elaborou nenhum documento sobre Eucaristia (só um capítulo de SC),
todavia “é interessante notar que todo o Concílio está cheio de alusões à
Eucaristia como centro do mistério eclesial”:[69] sem
essa compreensão, esvaziaríamos a reforma conciliar. Um primeiro pensamento, em
SC 5:
Esta obra da Redenção humana e da
perfeita glorificação de Deus preparada pelas maravilhas realizadas por Deus no
povo da Antiga Aliança, cumpriu-se em Cristo Senhor, especialmente por meio do mistério pascal de sua bem-aventurada
Paixão, Ressurreição dentre os mortos e gloriosa Ascensão, quando ‘morrendo
destruiu a morte, e ressurgindo restaurou nossa vida’ (Prefácio pascal). Pois
do Coração traspassado de Cristo, morto na cruz, nasceu o admirável sacramento
de toda a Igreja.
Definida a
identidade da liturgia, SC trata do Sacrossanto
mistério da Eucaristia (capítulo II).
Na Última Ceia, na noite em que seria
traído, nosso Salvador instituiu o Sacrifício Eucarístico de seu Corpo e
Sangue, com o qual perpetuaria pelos séculos, até que ele venha (donec
veniret), o Sacrifício da Cruz. Deste modo, ele confiou à Igreja, sua amada
esposa, o memorial de sua Morte e Ressurreição: sacramento da piedade, sinal da
unidade, vínculo de caridade (Santo Agostinho), convívio pascal, ‘no qual se
recebe o Cristo, a alma se enche de graça e nos é dado [um] o penhor da glória
futura (Breviário: ant. do Magnificat,
Corpus Christi) (SC 47).
O documento
conciliar manifesta, em seguida, o importante desejo e a busca solícita da
Igreja: “Que os fiéis cristãos não
estejam como estranhos e mudos espectadores, neste mistério da fé”. Logo propõe
uma “metodologia litúrgica” sobre a qual ainda estamos em dívida para traduzir
em comportamentos coerentes: per ritus et preces id (fidei mysterium) bene inteligentes, isto é, “o mistério da fé) se compreende bem por
meio dos ritos e das orações”.[70]
A esse respeito,
acrescento breves considerações, seguindo livremente o liturgista Andrea Grillo
que, numa extensa obra sobre Eucaristia, amplamente disserta sobre a “forma fundamental” da Eucaristia.
De fato, a
mediação ritual – na sua forma fundamental de ceia e/ou de oração
eucarística – torna-se condição para aceder à verdade do sacramento e não
mais mera cerimônia exterior de um núcleo diretamente acessível
independentemente dela. Graças ao conceito de forma fundamental não é mais possível uma relação imediata com o significado
da eucaristia, sem a mediação da ceia e/ou
da anáfora. Um elemento contingente se
torna necessário. (...) À atenção exclusiva da teologia nas palavras da
fórmula, pronunciadas sobre a matéria válida por parte do ministro ordenado,
substitui-se uma atenção ao inteiro
regime verbal, ao qual se acrescenta uma
nova percepção do regime não-verbal, cujos sujeitos são Cristo e a igreja,
o Senhor e a assembleia reunida, em relação ao “cear juntos” e ao “orar
juntos”, a cujo serviço está uma articulada estrutura ministerial.[71]
Abrindo para
ulteriores e complexas reflexões, Grillo se apropria da síntese de outro autor
(Crespani) e assume que “uma bela definição de Eucaristia que seja fiel à
tradição, mas sem renunciar a traduzi-la [para o nosso tempo], pode ser
formulada assim: ‘O anúncio da morte do Senhor se torna presente na igreja numa
ceia de escuta da palavra e de oração em ação de graças’”.[72]
Essas essenciais
observações abrem para uma renovada compreensão da Eucaristia, de seus ritos e
da modalidade celebrativa. Tudo o que fazemos na celebração da Eucaristia (e
demais sacramentos) deve ser vivido como experiência de total envolvimento no
mistério pascal do Senhor. Sua presença
real passa pela experiência de comunhão junto com a oração de Cristo e da
Igreja. A maior riqueza bíblica (cf. SC 51) que o Concílio nos fez recuperar, a
rica liturgia da Palavra – contato sacramental
com o Senhor (SC 7) – evento performático
(Papa Bento XVI, Verbum Domini 56) –,
oração eucarística bem proclamada (com calma, fé e arte verdadeira), rito de comunhão, expressão ritual do nosso
caminhar pelas estradas da vida rumo ao Reino: tudo deve ser vivido como sequência ritual qualificante o evento
que celebramos: o mistério pascal do Senhor, até que Ele venha.
O documento
conciliar apontou as ideias que deveriam nortear uma sólida reforma da liturgia,
motivando-a. Na Instrução Geral do Missal
Romano (IGMR), lê-se que:
Devido à consciência de nova situação
do mundo de hoje, não se julgou comprometer o venerável tesouro da tradição, modificando-se
algumas expressões de textos antiquíssimos, para que melhor se adaptassem à
atual linguagem teológica e correspondessem melhor à atual disciplina eclesiástica.
(...) Desse modo, as normas litúrgicas do Concílio tridentino foram em muitos
pontos completadas e aperfeiçoadas pelas normas do Vaticano II, que levou a bom
termo os esforços que visavam a aproximar os fiéis da Sagrada Liturgia,
empreendidos nos quatro últimos séculos, principalmente nos últimos tempos,
graças, sobretudo à estima pelos estudos litúrgicos, promovidos por São Pio X e
seus sucessores (IGMR 15).
Então, pode-se
colocar entre os passos dados: maior
e melhor participação dos fiéis nas
ações litúrgicas, escuta mais abundante da Palavra, valorização da homilia,
restauração da oração dos fiéis e da concelebração, admissão das línguas
vernáculas nas celebrações litúrgicas, possibilidade da comunhão sob as duas
espécies, maior participação dos fiéis na comunhão eucarística. Nos anos
sucessivos, as orientações conciliares foram realizadas, superando inclusive os
textos conciliares. Com numerosos liturgistas, reconheço que “nos dias de hoje,
a celebração da Eucaristia apresenta
nas comunidades cristãs um aspecto notoriamente melhor do que antes do Concílio”.
(...) Não é uma assembleia que ‘assiste’ à missa, mas que ‘celebra a missa’: Na
“Missa ou Ceia do Senhor, o povo de Deus é convocado e reunido (...) para
celebrar a memória do Senhor ou sacrifício eucarístico” (IGMR 27).[73]
Anotações
conclusivas
A Eucaristia, afirmava Santo Tomás, contém totum mysterium nostrae salutis, a
totalidade do mistério da nossa salvação. Enriquecidos pela longa experiência
da Igreja, à luz da Palavra e do divino Espírito, a Eucaristia é a última e perene Páscoa de Cristo (In fine saeculorum Pascha nostrum immolatus
est Christus: Sacramentário Gelasiano).
Este Congresso Eucarístico
nos convida a refletir sobre “Pão em todas as mesas”, contemplando
os nossos primeiros irmãos e irmãs que repartiam
o pão com alegria e não havia necessitados entre eles (At 2,46). Enquanto
procuramos as raízes e as razões da Eucaristia, minhas palavras
visam ser uma simples e incompleta introdução para acolher e viver o grande mistério da nossa fé, e
compreender que a Eucaristia é a “expressão litúrgica da entrega máxima por
amor” (Texto-Base, p. 50). Participando da Eucaristia, possamos receber
incentivos para “fazer o mesmo que Jesus fez” (TB, 51). Como deseja o Papa
Francisco, “o dom lá recebido se manifeste na dedicação dos irmãos” (TB 50).
A presença eucarística não acontece
por um “milagre cosmológico”, pelo qual o Senhor se esconde debaixo das
espécies do pão e do vinho, mas é o dom de si do Senhor, além das dimensões espaciotemporais,
no sinal do banquete. Ele que se doou totalmente em sua Páscoa, agora continua
se oferecendo à sua Igreja, no símbolo do alimento e da bebida. A Palavra
pronunciada, pela potência do Espírito, cria uma novidade, uma mudança: assume os elementos
sacramentais na potência do Kyrios e
os transforma em dom do seu Corpo glorioso. Os pobres elementos do pão e do
vinho se tornam, pela fé, sacramento.
O evento eucarístico visa transformar os humanos que acolhem Jesus e se deixam
conduzir por Ele: o pão eucarístico abre à vida, à humanidade e sua história,
ao mundo e a todas as suas expressões, mantendo permanentemente viva a fé e a
comunhão eclesial.
A fé eucarística orienta e sustenta o
caminho dos discípulos para a salvação escatológica; o Cristo pascal pega um
fragmento do mundo e o torna fermento do homem novo e da transformação final,
rumo ao Deus da glória: então Cristo será
tudo em todos (Cl 3,11). Na
precariedade do espaço e do tempo – que a vida constantemente nos faz experimentar
– precisamos sentir a presença do Senhor doado
por nós: possamos acolhê-lo com mais intensidade em nossa existência. Em
silêncio adorante, na intimidade com o Santíssimo, a quênose indizível de Deus que veio
morar no meio de nós, entre profundamente em nós, e nos envolva no seu infinito
mistério de amor.[74]
Com padre Gopegui reconheço que:
A ação litúrgica remete constantemente à vida,
onde será verificada sua verdade, como o foi na vida de Cristo. (...) Por isso,
a vida cristã que nasce da Eucaristia volta a remeter à Eucaristia, numa
circularidade que só será consumada na Eucaristia final, viático para a última jornada do caminho para a Glória do Pai.[75]
Rezemos, com as palavras da Oração
Eucarística:
Pela participação neste
mistério, ó Pai todo-poderoso, vivificai-nos no Espírito... Fazei que todos os
fiéis da Igreja, / discernindo os sinais dos tempos à luz da fé, / empenhem-se
coerentemente / no serviço do Evangelho. Tornai-nos atentos às necessidades de
todas as pessoas / para que, participando de suas dores e angústias, / de suas
alegrias e esperanças, / fielmente lhes anunciemos a salvação / e, com eles,
sigamos no caminho do vosso reino (OE para
diversas circunstâncias, IV).
Referências:
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Petrópolis: Vozes, 2002.
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DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Instrução Geral do Missal Romano. Brasília:
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MARSILI, Salvatore. Das origens da
liturgia cristã às caracterizações rituais. In: Anámnesis 2. Panorama
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magistério do Concílio de Trento. In: Anámnesis 3. A Eucaristia,
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SORCI, Pietro. Mistério Pascal. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille Maria (Org.). Dicionário
de Liturgia. São Paulo: Paulus, 2004. p. 771-787.
[1] Cf.
BIANCHI, Enzo. Un pane unico per giudei e
gentili, in La cena del Signore. Parola
Spirito e Vita (Quaderni di lettura biblica, 7). Bolonha: EDB, 1987, p. 97.
[2] MARTINI,
Carlo Maria, in Editoriale. Ibidem,
p. 3.
[3] SORCI, Pietro. Mistério pascal. In SARTORE,
Domenico – TRIACCA, Achille Maria (org.). Dicionário
de Liturgia.
São Paulo: Paulus, 2004, p. 771 e
seg.
[4] Encontram-se referências ao mistério pascal em SC: 7, 104 (na morte
dos santos), 106 (na celebração do Domingo), 109 (na Quaresma, preparando a
celebração da Páscoa); Lumen Gentium:
8 (a Igreja comparada com o mistério do
Verbo encarnado); 26 (nas
Igrejas, celebra-se o mistério da Ceia do
Senhor); 52 e 59 (mistério da salvação); 54 e 65 (mistério da encarnação); Dei Verbum: 26 (participação no mistério Eucarístico que faz crescer a
vida da Igreja); Gaudium et Spes: 22
(o cristão associado ao mistério pascal); Presbyterorum
Ordinis: 5 (a Eucaristia na vida
pessoal e ministerial dos presbíteros, fonte
e cume de toda a evangelização, centro
da assembleia dos fiéis); Christus
Dominus (sobre o ofício pastoral dos bispos), 15; Optatam Totius (formação sacerdotal). Outras referências ao mistério pascal em Christus
Dominus (sobre o ofício pastoral dos bispos), 15; Optatam Totius (formação sacerdotal), 8; Gaudium et Spes (A Igreja no mundo de hoje), 22 e 38.
[5] Sorci.
Mistério pascal. Op. cit., p. 774, citando N. Füglister (O significado salvífico da páscoa), escreve: “As circunstâncias providenciais em que o rito se realizou na
véspera do Êxodo, circunstâncias descritas de forma épica pelas fontes mais
antigas (Ex 12,21-23.27b.29-39), fizeram que a estes ritos ficasse confiada a
lembrança do acontecimento salvífico fundamental”... Até o nome pesah, que inicialmente se referia a um
saltar ou passar adiante sagrado, ficou inserido neste processo de refundação:
ele veio a significar que o Senhor ‘passou adiante das’ (saltou as) casas dos
israelitas, poupando-as (Ex 12,27a)”.
[6] Cf. ibidem,
p. 774.
[7] Cf. MARSILI, Salvatore. Sinais
do Mistério de Cristo.
Teologia
litúrgica dos Sacramentos, espiritualidade e Ano Litúrgico. São Paulo:
Paulinas, 2010, p.
357-361.
[8]
As
prescrições detalhadas do ritual refletem a longa história de composição desse
texto (Ex 12,1-13.16). Nota-se a preocupação de oferecer a motivação
histórico-salvífica à celebração anual do evento. Desse modo, o sacrifício
propiciatório dos nômades se torna memorial
(cf. Ex 12,14.27).
[9] Mishná (repetição oral). Coletânea jurídica [corpus iuris] da tradição oral judaica, posta por escrito pelo fim
do século II da era cristã. Formará mais tarde a base para o Talmude: in giraudo, César. Num
só Corpo. Tratado mistagógico sobre a Eucaristia. São Paulo: Loyola, 2003,
p. 615.
[10] MARSILI. Sinais do Mistério de Cristo. Op. cit., p.
363-364.
[11] Cf. VON RAD,
Gerhard. Teologia
dell’Antico Testamento, I. Teologia delle tradizioni storiche d’Israele. Brescia: Paideia, 1972, p. 149-150.
[12]
Veja, também, Josué 24,2-13; Salmo 136,10-22.
[13] Pode-se ver o modelo desta
dimensão histórica da celebração em Ex 19-24.
[14] FABRIS,
Rinaldo. Storia della Salvezza e momento
celebrativo nel Nuovo Testamento, in AA.VV. Celebrare il Mistero di Cristo. Atti
della VI settimana di studio dell’Associazione professori di liturgia. Roma, 5-7
settembre 1977. Bologna: Dehoniane, 1978, p.
24-25 (tradução nossa). D’ANNIBALE, Miguel Ángel escreve: “Todo esse complexo
acontecimento histórico é símbolo de uma realidade futura em que ocorrerá a
libertação definitiva. Por isso, na páscoa tomada como Êxodo e Aliança do
Sinai, estamos diante de um fato histórico de natureza e valor simbólico. A
Páscoa hebraica perpetuou-se no tempo como uma celebração ritual. (...) O acontecimento
salvífico permanece no transcurso da história, não em sua materialidade, mas em
sua ação salvífica, de tal maneira que o termo “Páscoa” designa em primeiro
lugar sua dimensão ritual”: In: CELAM. A celebração do Mistério pascal. Manual de Liturgia, III. Os
Sacramentos: sinais do mistério pascal. São Paulo: Paulus, 2005, p. 167-168.
[15] D’ANNIBALE.
Ibidem, p. 175.
[16] Sorci.
Mistério pascal. Op. cit., p. 778 (tradução nossa).
[17] Shemah [ouve]. “Serviço cultual judaico que consiste na leitura
(precedida e seguida de formulários de bênção) de Dt 6,4-9; 11,13-21; Nm
15,37-41”, in giraudo. Num
só Corpo. Op. cit., p. 617.
[18] A Shemoneh Esreh (dezoito bênçãos), nome dado à Tefillá [súplica], a oração de intercessão por excelência, que o
fiel é obrigado a recitar individualmente três vezes ao dia: in GIRAUDO. Num só Corpo. Op.
cit., p. 219.
[19] Sorci. Mistério pascal. Op. cit, p. 779.
[20] FABRIS. Storia della Salvezza. Op. cit., p.
30.
[21] Com um ensinamento “posto sob a
autoridade de Rabbán Gamli’él (neto de Hillel e mestre de Paulo – cf. At 22,3)
ou ao neto dele”, a celebração pascal atinge seu ponto culminante, determina as
“três palavras obrigatórias” da celebração, isto é: páscoa, ázimo, erva
amarga. “Quem não diz na Páscoa estas três palavras não cumpre sua
obrigação”. Olha-se, mas sem elevá-la, a
pata [do cordeiro] “A páscoa que
nossos pais comiam quando a casa do santuário estava em pé, por que [a comiam]?
Porque o Santo – bendito seja Ele! – saltou-por-cima das casas de nossos pais
no Egito, como está dito: “E direis: Este é o sacrifício de páscoa para o
Senhor, que saltou-por-cima das casas dos filhos de Israel no Egito, quando
golpeou o Egito e poupou nossas casas; e o povo se inclinou e se prostrou” [Ex
12,27]. Eleva-se o ázimo: “Este ázimo
que comemos, por que [o comemos]? Porque sua massa, a de nossos pais, não teve
tempo de fermentar, quando de repente se revelou a eles o Rei dos reis, o Santo
– bendito seja Ele! – e os remiu, como está dito: “E fizeram cozer a massa que
tinham levado embora do Egito à maneira de pães ázimos, porque não estava
fermentada, pois tinham sido lançados fora do Egito e não tinham podido
protelar e nem tinham feito provisões” [Ex 12,39]. Eleva-se a erva-amarga. Esta erva-amarga que comemos, por que a
comemos? Porque os egípcios amarguraram a vida de nossos pais no Egito, como
está escrito: “E amarguraram a vida de nossos pais no Egito, com a argila e os
tijolos e com toda servidão no campo, com toda sua servidão, com que os faziam
servir, com violência” [Ex 1,14]. In giraudo. Um só Corpo. Op.
cit., p. 109-111.
[22] ALDAZÁBAL,
José.
A Eucaristia. Petrópolis: Vozes,
2002, p. 40.
[23] Cf. ibidem, p. 42.
[24] BACIOCCHI (de), J. L’Eucaristia. Roma: Desclée & C. – Editori Pontifici, 1968, p.
7-8 (tradução nossa).
[25]
A Ceia derradeira de
Jesus com os seus discípulos, tão
importante para a fé dos cristãos, recebeu diferentes nomes ao longo dos
séculos. Paulo a chama de Ceia do
Senhor (1Cor 11,20); em Atos 2,42 e Lc 24,25, fala-se de fractio panis, fração do pão; em Roma e na África, nos séculos III-IV, dominicum, synaxis ou colecta; a
palavra missa (do latim missio ou dimissio) entrará na linguagem eclesial como a mais usada – apesar
de sua incerta origem; mais antigamente missarum
sollemnia. Antigo é também o termo eucaristia - eucaristia, às vezes, gratiarum
actio (já em S. Inácio de Antioquia); sacrificium,
oblatio; os gregos, a partir do século IX: leitourgia -
leitourguia e, no antigo latim
cristão: actio, agenda. Para as espécies consagradas, Corpus Christi, Caro Christi. Ibidem, p. 3 (tradução nossa).
[26] Cf. JEREMIAS, Joachim. Le parole dell’ultima cena. Brescia:
Paideia, 1973, p. 143-145.
[27] Cf. SORCI. Mistério pascal. Op. cit., p. 779.
[28] Ibidem, p. 780
[29] Ibidem, p. 780-781.
[30]ALDAZÁBAL. A Eucaristia. Op. cit., p. 125.
[31]MARSILI. Sinais do Mistério de Cristo. Op. cit., p. 384-85.
[32] Citação de LLOPIS, J. in SILVA
(da), José Ariovaldo. A celebração do
Mistério de Cristo ao longo da história. Panorama histórico geral da
liturgia. In AA. VV. A celebração do
mistério pascal. Outras expressões celebrativas do mistério pascal e a
liturgia na vida da Igreja (Manual de
liturgia IV). São Paulo: Paulus,2007, p. 486. Resume Aldazábal: “Deixando de
lado outros muitos aspectos deteriorados que afetavam a vida eclesial (escassa
formação do clero, intromissão do poder civil, pouca dedicação dos bispos à
pastoral etc.), é impressionante a lista de ‘abusos’ enumerada pela comissão
designada para isto, sobretudo na sessão de 1562”: ALDAZÁBAL. A Eucaristia. Op. cit., p. 191.
[33] MARSILI. Teologia
da celebração da Eucaristia. In A
Eucaristia, teologia e história da celebração. (Anámnesis,
3). São Paulo: Paulinas, 1987, p. 91-92.
[34]
GIRAUDO. Num só Corpo. Op. cit., p.
452. Nessa obra, p. 448-460, pode-se encontrar uma reconstrução histórica e
suas motivações teológicas. Para a história do Cânon Romano (Oração Eucarística
I), pode-se ver uma detalhada reconstrução in RIGHETTI, Mario. La messa. Commento
storico-liturgico alla luce del Concilio Vaticano II (Manuale di storia liturgica, III). Milão:
Àncora, 1966 (3ª edição), p. 342-475.
[35] GIRAUDO. Num só Corpo. Op. cit., p. 451. O Giraudo explica as causas desse
empobrecimento devido não só à reação contra Berengário, mas também ao estilo
dos neoconvertidos povos germânicos: Ib.
[36]MARSILI. A Eucaristia. Op. cit., p. 94. Nessa época, multiplicam-se as missas pelos defuntos, “para garantir a
salvação pronta e segura das almas dos defuntos”. “Estabelecido e
universalmente praticado o princípio de que a missa era meio infalível para a
libertação dos defuntos, era natural pensar que o mesmo devia valer para todas
as necessidades espirituais e materiais dos vivos” (...) “muitas vezes, era
previsto, para cada missa, o número das velas, o preço da oferta a se fazer ao
sacerdote e o número de esmolas aos pobres”: ibidem, p. 94-95.
[37] Ibidem, p.
95-99.
[38] GRILLO, Andrea. Eucaristia. Azione rituale, forme storiche, essenza sistematica. Brescia: Queriniana,
2019, p. 230.
[39] Ibidem, p. cit., p. 176.
[40] In giraudO. Um só Corpo. Op.
cit., p. 461.
[41] Em outro escrito, Formula Missae
et Communionis (1523), Lutero acrescenta: “Verdadeiramente neste livro
deixamos de dizer que a missa [não] é um sacrifício nem uma boa obra, como em
outras partes ensinamos abundantemente. Tomemo-la como sacramento ou
testamento, ...ou com qualquer outro nome piedoso que nos agrade, desde que não
seja emporcalhada com o título de sacrifício ou de obra; e ilustraremos o rito
com o que nos parece devê-la usar”; in Ibidem, p. 463.
[42] Neunheuser escreve: “Podemos dizer: o último traço da oração eucarística
desapareceu; desapareceu o prefácio; no lugar do Pater, uma paráfrase
moralizante; o ‘recordar-se’ do Senhor é reduzido a um fato puramente
subjetivo; uma forma vaga de consagração (para obter a presença real) e o
banquete sagrado (a Ceia). A preciosa herança dos primeiros séculos, isto é, a
ação litúrgica uma e única, a grande Prex
Eucharistica, não existe mais”: NEUNHEUSER, Burkhard. História da liturgia através das épocas culturais. São Paulo:
Loyola, 2007, p. 176-177.
[43] Cf. GIRAUDO. Um só Corpo. Op.
cit., p. 457-458. Observa Lutero que “na verdadeira missa, entre cristãos
autênticos, o altar não deveria permanecer como é e o sacerdote deveria sempre
estar voltado para o povo”: ibidem, p. 458.
[44] Ibidem, p. 77.
[45] Ibidem.
[46] O Concílio de Constança, com a
bula Inter Cunctas, de Martinho V,
contra as posições de Hus, e o Concílio de Florença, Decretum pro Armeniis (1439).
[47] A audiência da missa apresentada como o
maior sinal do cristianismo autêntico, ao ponto de se chegar a dizer: “A
primeira eficácia da missa é esta: se alguém ouvir dignamente ainda que uma só
missa terá muito mais vantagens do que se distribuir aos pobres os seus bens”: AA. VV. A
Eucaristia, teologia e história da celebração. MARSILI. Op. cit., p. 69-70.
[48] GIRAUDO. Um só Corpo. Op. cit. p.439-440.
[49] Ibidem, p.
440.
[50] PADOIN Giacinto.
Il pane che io darò. Il Sacramento
dell’Eucaristia. Roma: Borla, 1983. Op.
cit., p. 145 (tradução nossa).
[51] GIRAUDO. Op. cit. p. 441. Nas
páginas desta grande obra: Num só Corpo,
podem-se encontrar ricas informações sobre o assunto, sobretudo, nas páginas
167-169; 438-444; 461-462.
[52] Ibidem, p. 441. O Catecismo da Igreja Católica recorda os
ensinamentos de Trento, com a afirmações dos Padres da Igreja e de Papa São
Paul VI que, na Carta encíclica Mysterium
fidei (1965), escreve a respeito da presença
de Cristo na Eucaristia: “Esta presença chama-se ‘real’ não por exclusão,
como se as outras não fossem ‘reais’, mas por antonomásia, porque é substancial
e porque, por ela, Cristo, Deus e homem, se torna inteiramente presente”: São
JOÃO PAULO II: Catecismo da Igreja
Católica. Brasília: CNBB, 2013, n. 1374, p. 451. Ao assunto transubstanciação, o Catecismo dedica os números 1373-1377.
[53] Ibidem, p. 465-474.
[54] Abundantes informações se
encontram em GIRAUDO. Um só
Corpo. Op. cit., p. 444-448 e RIGHETTI, Mario. La messa. Commento storico-liturgico alla
luce del Concilio Vaticano II (Manuale di
storia liturgica, III). Milão:
Àncora, 1966 (3ª edição), p. 590-614 (sobre o culto ao SS. Sacramento: a
contemplação da hóstia, a exposição do SS. Sacramento, as procissões
eucarísticas, a bênção com o SS. Sacramento, todas práticas que se desenvolvem
ao longo dos primeiros séculos do segundo milênio).
[55] Ibidem, p. 476.
[56] Gopegui observa: “Não se deve ver na expiação vicária uma espécie de compensação que o justo, com seu
sofrimento, pagaria a Deus pela injustiça do pecador. A doutrina bíblica da
expiação não deve ser confundida com a doutrina jurídica da satisfação”:
GOPEGUI, Juan A. Ruiz (de). Eukharistia. Verdade
e caminho da Igreja. São Paulo: Loyola, 2008, p. 277.
[57] Cf. giraudo. Num só Corpo.
Op. cit., p. 475. 478.
[58] NEUNHEUSER.
História da liturgia. Op. cit., p.
181.
[59]giraudo. Num só Corpo.
Op. cit., p. 479.
[60] GOPEGUI. Eukharistia. Op. cit., p. 276.
[61] Uma síntese em GOPEGUI. Op.
cit., p. 276 e MARSILI. Teologia da celebração da eucaristia. In AA. VV. A
Eucaristia, teologia e história da celebração; Op. cit., p. 135-136; Giraudo. Num só corpo. Op.
cit., p.479-498.
[62] GIRAUDO. Num só Corpo. Op. cit., p. 485.
[63] Ibidem, p. 486.
[64] Na elaboração destas observações,
sigo livremente o pensamento de Grillo. Eucaristia. Op. cit., p. 12-53. O autor me confirmou de ter
resumido fielmente o seu pensamento.
[65] Nos anos 80 – século passado, Joseph
Ratzinger escreveu que “a liturgia em sentido moderno nasceu com a descoberta
dessa categoria” (Grillo, p. 23).
[66] Cf. SILVA (da). A celebração do Mistério de Cristo. Op.
cit., p. 498-500.
[67] NEUNHEUSER. História da liturgia. Op. cit. p.
217.
[68] SILVA (da), José Ariovaldo. A celebração do Mistério de Cristo. Op.
cit., p. 506.
[69] ALDAZÁBAL. A
Eucaristia. Op.
cit., p. 214. Podem-se encontrar referências ao mistério pascal em outros números de SC: 7, 104 (na morte dos
santos), 106 (na celebração do domingo), 109 (na Quaresma, preparando a
celebração da Páscoa); Lumen Gentium:
8 (a Igreja comparada com o mistério do
Verbo encarnado); 26 (nas
Igrejas, celebra-se o mistério da Ceia do
Senhor); 52 e 59 (mistério da salvação); 54 e 65 (mistério da encarnação); Dei Verbum: 26 (participação no mistério Eucarístico que faz crescer a
vida da Igreja); Gaudium et Spes: 22
(o cristão associado ao mistério pascal); 38 (a atividade humana levada à
perfeição no mistério pascal); Presbyterorum
Ordinis: 5 (a Eucaristia na vida
pessoal e ministerial dos presbíteros, fonte
e cume de toda a evangelização, centro
da assembleia dos fiéis).
[70] Lamento
que no texto das edições CNBB se traduza: “Os fiéis cristãos não estejam como
estranhos ou mudos espectadores neste mistério da fé, mas entendendo bem os ritos e preces”. O meio, é interpretado como
objeto do conhecimento. (O mesmo erro na tradução italiana aos cuidados das Dehoniane
de Bolonha 1993, p. 385).
[71] GRILLO. Eucaristia.
Op. cit., p. 313-314 (tradução nossa).
[72] Ibidem, p. 314.
[73] ALDAZÁBAL. A
Eucaristia.
Op. cit., p. 213.
[74] Nestes últimos pensamentos, sigo
livremente o que escreve (meu professor de Teologia) PADOIN. Il pane che io darò. Op. cit., p.
239-240 (tradução nossa).
[75] GOPEGUI. Eukharistia.
Op. cit., p. 284.