"Não nos deixei cair em tentação"
A Liturgia deste 1º Domingo da Quaresma nos ensina a reconhecer a necessidade e o valor da tentação, pois como nos ensina Santo Agostinho: “Ninguém se conhece a si mesmo se não é tentado”. Mas, não é fácil expressar nossas tentações pessoais e é também problemático explicar como nascem e a força que exercem sobre nós.
Quando a tentação se abate sobre nós, temos a tendência de perguntar: Por que Deus a permite? Certamente para o nosso bem, caso contrário Nosso Senhor não teria experimentado. De fato o Pai quis que tivéssemos um paradigma, Cristo Jesus, e, ao passarmos por tentações, agíssemos como Ele. Não podemos tomar a provação como um desastre ou decadência espiritual, pois se assim fosse deveríamos concluir que Nosso Senhor havia passado por uma crise espiritual, o que é absurdo!
Também podemos dizer que Deus “nos põe à prova”, enquanto que o diabo “nos tenta”, quer seduzir-nos ao mal. O Antigo Testamento nos narra algumas experiências de provação: Deus escolheu os primeiros patriarcas: Abraão, José e Moisés e depois provou sua fé; também o povo hebreu salvo milagrosamente da escravidão do Egito foi submetido a duras provas no deserto. Deus pôs à prova a sua fidelidade e a sua fé em meio às adversidades.
Do mesmo modo também Deus o faz hoje com cada um de nós, como nos ensina a Bíblia, sobretudo nos livros sapienciais. Esta verdade está explicitada, de modo dramático, através do livro e da experiência de Jó. As desgraças que Deus permitiu, provaram sua fidelidade e sua fé, mas também o fizeram uma pessoa mais forte para poder resistir melhor às adversidades. Devemos passar através de várias provas, algumas das quais se repetem durante muito tempo, às vezes por toda a vida.
Mas, falemos da tentação. Diante dela devemos crer na força de Nosso Senhor Jesus Cristo e não na nossa. A experiência de uma tentação vencida, nos ajuda a entender que podemos superar vitoriosamente as tentações, seguindo o exemplo de Cristo.
“Naquele tempo, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo.” (cf. Mt 4,1-11) Nos chama a atenção que Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto imediatamente depois do seu batismo, quando se preparava para iniciar seu anúncio e pregação do Reino de Deus. O deserto era realmente um lugar separado do ruído do mundo, onde Jesus queria dedicar-se, com oração e jejum, a preparar-se para cumprir a dificílima tarefa que seu Pai lhe havia encomendado. E neste tempo de especial meditação e solidão apareceu, como não podia ser de outra maneira, o diabo para tentá-lo.
A imagem do deserto na Bíblia é evocada como um grande mistério. É um lugar onde aparentemente a vida não pode existir por sua sequidão, aridez e esterilidade, mas é ao mesmo tempo um meio para o encontro com Deus. “Eu mesmo o levarei ao deserto e lhe falarei ao coração.” (Os 2, 16) Paradoxalmente, este cenário realmente inóspito para a vida, é privilegiado para escutar a voz de Deus, que fala na desnudez de nosso ser.
Junto a este cenário do deserto está hoje na Liturgia o cenário do paraíso terrestre (cf. Gn 2,7-9; 3,1-7) e ainda podemos citar como que um terceiro cenário que é metade paraíso e metade deserto, cenário este onde se desenvolve a pantomima de nossas vidas.
No paraíso terrestre, apesar de estar cercado de maravilhas, algo faltava a nossos primeiros pais: não tinham o mérito da fidelidade face às vicissitudes e reveses e o mérito da luta. Diz um pensador cristão: “Até aquele momento, que luta tinha travado Adão? Nenhuma. Ele não tinha más inclinações, ele não tinha defeitos nativos, ele não tinha apetência para o mal. No paraíso havia tudo, exceto um herói!” Nessa situação de felicidade, aproxima-se o demônio para tentá-los através da serpente infernal e Adão e Eva sucumbiram à tentação. No relato do Gênesis, nossos pais descobrem sua fragilidade na desnudez de seu ser. Se dão conta, depois de pecar, que suas ações afetam sua própria vida, suas relações entre eles e sua relação com Deus.
As tentações servem como um meio para o conhecimento de nós mesmo, o reconhecimento de Deus e o nosso crescimento humano. Arraigadas na identidade de nosso ser: na tentação de Jesus o diabo lhe põe em questão sua própria identidade: “se és Filho de Deus…” Nas tentações surge a pergunta: quem somos? Ainda que muitas vezes não haja “tempo” para refletir sobre isso, as tentações vão direto ao mais central de nossa vida e a nossa estrutura relacional.
O relato das tentações nos permite ver-nos a nós mesmos e analisar nossa relação com Deus e com os outros, partindo da vida de Jesus. Mas, não devemos vê-las fora do contexto do deserto, já que ali Deus fala ao coração e é o lugar privilegiado para encontrarmos conosco mesmo e com Deus.
“Deserto” porque mesmo vivendo entre multidões e milhares de “amigos” nas redes sociais, muitas vezes estamos sós, sem apoio para representar bem o nosso papel no teatro da vida. E “paraíso” porque não só temos o necessário, mas tanta abundância que já não sabemos o que escolher. Neste “paraíso-deserto” nos questionamos o que Adão e Eva não se perguntaram? Temos indagado do Senhor qual é a sua vontade?
À imitação de Jesus muitos santos também foram ao deserto orar e purificar seu espírito e tiveram as maiores tentações. Ter tentações não é algo pecaminoso ou inumano. Provavelmente os maiores santos foram os que tiveram as maiores tentações; o demônio sabe muito bem a quem tenta.
O mal não é ter tentações, o mal é cair nelas, é dar ouvido ao infernal inimigo, é estabelecer a conversa com o demônio, pois aí ele já alcança metade de seu intento, pois o próximo passo é a queda. Quando começamos a dar passos firmes no caminho das virtudes, o demônio costuma intensificar as tentações, visando impedir a nossa santificação, aproveitando-se de nossas debilidades humanas.
Não devemos assustar-nos nunca de nossas fraquezas decorrentes do pecado, de ter maus pensamentos e inclinação para o mal ou tendências pecaminosas e paixões desregradas. A maior parte das vezes são produto de nossa frágil e pecadora condição humana. Totalmente diversa de Nosso Senhor, igual a nós em tudo, menos no pecado.
Outra coisa muito diferente é que nós, livre e voluntariamente, mais das vezes, buscamos ou nos expomos à tentação. Já nos advertiam nossos mestres antigos que o que ama o perigo termina caindo nele. Não pedimos a Deus que nos livre de ter tentações, mas sim que não nos deixe cair nelas. Assim é como o fazemos de fato todos os dias, quando rezamos o Pai Nosso. E, por nossa parte, não nos ponhamos sem necessidade em perigo de ser tentados, porque então sim estaremos facilitando a tarefa do nosso especial inimigo, o diabo.
Com o diabo não se conversa. Tomando uma atitude radical, Jesus cortou a conversa com ele como o podemos perceber nas tentações. Aprendamos a grande lição que Jesus hoje nos dá. Nas tentações vemos como o mais importante não é o material, nem sequer o mais determinante é o satisfazer a fome, nem o é ser reconhecido e aplaudido pelas pessoas, ou ainda possuir o poder e a glória humana. O mais importante é viver da Palavra de Deus; abandonar-se e confiar nele; adorar e servir somente a Deus.
Autor: Pe. José Assis Pereira Soares