Mistério Pascal, mistério de misericórdia

Atualizado em 25/06/19 às 12:175 minutos de leitura424 views

Pe. José Assis Pereira Soares, Vigário Geral

A festa da Divina Misericórdia celebrada neste II Domingo da Páscoa, que conclui a Oitava Pascal, foi instituída oficialmente por São João Paulo II em 30 de abril do ano 2000 por ocasião da canonização de Santa Faustina Kowalska (1905-1938), religiosa e mística polonesa. O contexto desta primeira canonização do terceiro milênio foi deliberada e programaticamente consagrado ao tema da misericórdia. Naquele dia o Santo Padre realizou o desejo da santa de consagrar o mundo à divina misericórdia e encarregou a Igreja de transmitir ao mundo o fogo da compaixão. Com toda certeza o papa referia-se às mensagens que Jesus tinha comunicado à Santa Faustina, por ela recolhidas no seu “diário”, em que caracteriza a misericórdia como o maior e mais elevado atributo de Deus; quando disse querer “transmitir a sua mensagem ao novo milênio: a todos os homens, para que aprendam a conhecer cada vez melhor o verdadeiro rosto de Deus e o verdadeiro rosto dos irmãos” e que esta mensagem devia ser como um raio de luz para o caminho do ser humano no terceiro milênio. Este Domingo da Misericórdia permite-nos reler a Páscoa sob uma nova perspectiva. A misericórdia divina! Eis o dom pascal que a Igreja recebe de Cristo Ressuscitado e a contempla na vida e na liturgia. O amor misericordioso do Pai na pessoa do seu Filho, celebrado intensamente no tempo pascal. O Papa emérito Bento XVI disse que o São João Paulo II “mostrou-nos o mistério pascal como o mistério da misericórdia divina... O limite imposto ao mal é, em última analise, a misericórdia divina... Jesus Cristo é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus”. Dois papas, dois santos da segunda metade do século XX: João XXIII e João Paulo II reconheceram com toda a clareza os “sinais dos tempos” e exortaram a que se voltasse a situar a questão da misericórdia no centro do anúncio e das práticas eclesiais. João XXIII, o primeiro a lançar esse desafio. Já no seu diário espiritual se encontram inúmeras e profundas considerações sobre a misericórdia divina. Para ele, a misericórdia é o mais belo nome de Deus, a forma mais bela de nos dirigirmos a Ele. No discurso de abertura do Concilio Vaticano II, João XXIII afirmou que no seu novo estilo pastoral a Igreja “prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade... a Igreja Católica, levantando por meio deste Concílio Ecumênico o facho da verdade religiosa, deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondade também com os filhos dela separados”. Desde então, o tema da misericórdia tornou-se fundamental, não só para o Concílio, mas também para toda a prática pastoral da Igreja pós-conciliar. João Paulo II desenvolveu e aprofundou o que foi sugerido por João XXIII, e fez da misericórdia o tema condutor do seu longo pontificado. É impressionante como no fim do século XX e inicio do século XXI os Papas têm-nos proposto o tema fundamental da misericórdia. O Papa Francisco faz, com este Ano da Misericórdia, como que uma síntese da riqueza do pensamento e ensinamento dos “papas da misericórdia” que atravessaram a história da Igreja católica. Os sucessores de Pedro fizeram da misericórdia a “viga mestra”, eixo fundamental do magistério pontifício contemporâneo. Alguém já escreveu que o século XIX “redescobriu” Cristo, modelando assim a mentalidade católica dos dois séculos seguintes, e que redescobriu um Cristo perfeitamente amoroso. A página do Evangelho deste Domingo (cf. João 20, 19-31) é rica de misericórdia e de bondade divina. Relata duas aparições, duas visitas de Cristo Ressuscitado aos seus discípulos, entrando pelas portas fechadas do Cenáculo. Jesus mostra os sinais da paixão, chegando a conceder ao incrédulo Tomé que os tocasse. As aparições do Ressuscitado são experiências de fé. A finalidade delas é suscitar e garantir a fé dos apóstolos e da primeira comunidade. Mas, sobretudo os relatos das aparições foram escritos para cristãos das gerações posteriores, como nós. “Para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (v. 31). Muitos têm dificuldade para crer, debatem-se em meio a muitas dúvidas, gostariam de ver, tocar, verificar se o Senhor de fato ressuscitou. Antes de narrar a primeira aparição João descreve a situação de insegurança e fragilidade que dominava a comunidade de Jerusalém naquele primeiro momento: “Ao anoitecer, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v. 19). Jesus supera as portas trancadas para dizer-nos que devemos superar o medo. Na realidade em que vivemos, às vezes nos parecemos com os apóstolos e primeiros discípulos de Jesus. Passamos por situações de medo e dúvida também. Trancamo-nos em nossas casas, colocamos chaves e cadeados em todas as portas, até mesmo no coração ou fechamo-nos em nós mesmos. Nas ruas e nas estradas da vida, nos armamos de extremo cuidado, quase doentio. Medo do terrorismo, atentados, sequestros, agressões, violência, perseguições, assaltos, acidentes, doenças, morte etc. Todos têm experiência desse fechamento, que não é pascal, não é cristão. Fechar-se é morrer. O cristianismo é abertura aos outros. É porta aberta para receber, acolher e ir ao encontro, para a misericórdia. Hoje o Senhor Ressuscitado nos diz: “Não tenhas, medo. Eu sou o Primeiro e o Último, aquele que vive. Estive morto, mas agora estou vivo para sempre. Eu tenho a chave da morte e da região dos mortos” (Ap 1,17-18). À comunidade mergulhada nas trevas de um mundo hostil, Jesus se coloca no centro e lhe transmite duplamente a paz (vv. 21), a serenidade e confiança.  Jesus garante assim, aos seus discípulos que Ele venceu aquilo que os assustava: a morte e a hostilidade do “mundo”. E acrescenta “Como o Pai me enviou, também eu vos envio... Recebei o Espírito Santo. A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados, a quem os não perdoardes, eles lhes serão retidos”. (vv. 22.23) É esta a missão da Igreja sempre assistida pelo Espírito Santo, levar a todos o feliz anúncio, a jubilosa realidade do Amor misericordioso de Deus. Com esta aparição de Jesus a Tomé no meio da comunidade João nos ensina que podemos fazer a experiência da fé em Jesus vivo e ressuscitado na comunidade cristã, que é o lugar natural onde se manifesta e irradia o amor misericordioso do Pai, na Igreja como “corpo místico de Cristo”. Felizes seremos se crermos e fizermos a mesma experiência de encontrar o Cristo vivo na comunidade de fé e sem medo a testemunharmos aos outros sendo misericordiosos, como o Pai é misericordioso (cf. Lc 6,36).

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