Fomos criados para a vida e não para a morte

Atualizado em 11/11/19 às 16:505 minutos de leitura896 views
A Liturgia deste Domingo convida-nos ainda a refletir sobre o mistério da ressurreição dos mortos. O Evangelho de São Lucas (cf. Lc 20,27-38) apresenta-nos Jesus que se confronta com alguns saduceus, os quais não acreditam na ressurreição. No tempo de Jesus os fariseus defendiam a ressurreição no último dia, ao passo que os saduceus a negavam. Ao ouvirem a pregação de Jesus aproximaram-se dispostos a colocá-lo numa situação embaraçosa. Segundo a lei do “levirato”, se um homem morria sem ter tido filhos, o irmão estava obrigado a casar-se com a viúva para deixar descendência. Para ridicularizar a ressurreição e pôr Jesus em dificuldade, submeteram-lhe um caso absurdo: uma mulher que tivera sete maridos, todos irmãos, os quais morreram sem deixar descendência. Se existe ressurreição, ela será esposa de quem? Jesus não cai na cilada e reafirma a verdade da ressurreição: “Na vida, os homens e as mulheres casam-se, mas os que forem julgados dignos da ressurreição dos mortos e de participar da vida futura, nem eles se casam nem elas se dão em casamento; e já não poderão morrer, pois serão iguais aos anjos, serão filhos de Deus porque ressuscitaram”. (vv. 34-36) A pergunta fundamental pelo nosso destino final é uma das grandes preocupações de todo ser humano. O que será de mim após a morte? Existe vida para além da morte? A morte é um final ou um começo? Espera-nos o nada ou outra vida distinta? No final do caminho está Deus ou o vazio? Jesus explica que a existência depois da morte será diferente da terrena. Ele nos faz compreender que não é possível aplicar as categorias deste mundo às realidades que vão além e são maiores daquilo que vemos nesta vida. Neste mundo, explica Jesus, vivemos de realidades provisórias, que passam que acabam; ao contrário, depois da ressurreição, já não teremos a morte como horizonte e viveremos tudo, também os vínculos humanos, na dimensão de Deus, de modo transfigurado. Inclusive o matrimônio, sinal e instrumento do amor de Deus neste mundo, resplandecerá transformado em plena luz, imersos na luz de Deus, vida toda ela dedicada ao seu louvor, numa eternidade feliz. Não temos dúvida de que a fé na ressurreição tem sido sempre uma força divina que iluminou e dirigiu a vida e a morte de milhões de pessoas ao longo da história, sobretudo os mártires cristãos, mas não só estes que morreram por professar sua fé em Cristo, mas também outras muitas pessoas que se mantiveram firmes em sua conduta cristã em meio a grandes dificuldades são para nós um exemplo maravilhoso de vida de fé. Sem fé na outra vida, na vida eterna, esta vida terrena muda de direção. São João Paulo II na carta “Evangelium Vitae” = “O Evangelho da vida” nos diz: “Vivemos numa verdadeira cultura da morte... situações de violência, de ódio, de interesses contrapostos, que induzem homens a agredirem outros homens com homicídios, guerras, massacres, genocídios... o escandaloso comércio de armas... a imprudente alteração dos equilíbrios ecológicos... É impossível registrar de modo completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as formas abertas ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!... Incorre hoje uma estranha contradição: precisamente numa época em que se proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma publicamente o valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente negado e espezinhado...” Esta cultura de morte nos faz pensar no sentido da vida e da morte para nós cristãos. Se tudo acabasse neste “primeiro tempo” da existência, estaríamos no mais injusto dos mundos imagináveis. Existe muita maldade que fica impune. Demasiadas vítimas às quais nunca se fará justiça suficiente. Por isso, clamamos a Deus e lhe pedimos um novo tempo no qual se restabeleça a justiça. Mas essa razão não seria suficiente. Também existe um motivo positivo que se transforma em clamor de ressurreição ou vida depois da morte. É o Amor. Não queremos que o Amor se veja derrotado pela morte. O amor é em nós um desejo imenso, que supera todo tempo. Se Deus é Amor, não o é por um pequeno espaço de tempo. Amor não tem medida, é eterno. Deus ama suas criaturas e as ama sem medida de tempo. Por isso a força do Amor nos ressuscitará. E é dessa ressurreição que o evangelho de hoje nos fala. Encontramos diante de uma das páginas magistrais do que Jesus pensava sobre a vida e a morte. O profeta de Nazaré, como pessoa, como ser humano, se pergunta, e lhe perguntavam, ensinava e dava respostas até às ridículas perguntas dos saduceus. Jesus recorre às tradições de seu povo, mas é justamente sua concepção de Deus como Pai, como bondade, como misericórdia, o que lhe levava a ensinar que nossa vida não termina com a morte. Um Deus que simplesmente nos deixasse morrer, ou que nos deixasse na insatisfação desta vida e de seus males, não seria um Deus verdadeiro. É que a questão da outra vida, na mensagem de Jesus, tem a ver com a concepção de quem é Deus e quem somos nós. Ele tem um argumento que é inteligente e respeitoso: não teria sentido que os pais houvessem posto sua fé em um Deus que não dá vida para sempre. O Deus que se revelou a Moisés é um Deus libertador do povo da escravidão que produz a morte. Daí que Jesus proclame que “Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos”. (v. 38) Para Ele “todos estão vivos”; fomos criados para a vida e não para a morte. É verdade que sobre a outra vida, sobre a ressurreição devemos aprender muitas coisas e, sobretudo, devemos “repensar” este grande mistério da vida cristã. Não podemos fazer afirmações e proclamar tópicos como se nada houvesse mudado na teologia e na cultura atual. Jesus, em seu enfrentamento com os saduceus, não somente se permite desmontar sua ideologia fechada, materialista e “ateia” em certa forma. Também corrige a mentalidade dos fariseus que pensavam que na outra vida tudo devia ser como nesta. Devemos estar abertos a não especular que ressurreição ocorrerá no final dos tempos. Devemos estar abertos a crer na ressurreição com um dom de Deus, como o acabamento final de sua obra criadora em nós. E devemos estar abertos a “repensar”, como Jesus nos ensina, que nossa vida deve ser muito diferente desta que tanto nos seduz, ainda que sejamos as mesmas pessoas, nós mesmos, os que temos de ser ressuscitados e não outros. Enfim, devemos “repensar” como fazer do cristianismo uma religião coerente com a possibilidade de uma vida depois da morte. Será precisamente a fé, o que faltava aos saduceus, o grande desafio a nossa cultura de morte e a nossa mentalidade desumanizada. Se negarmos a ressurreição, negamos nosso Deus, o Deus de Jesus que é um Deus dos vivos.

Pe. José Assis Pereira Soares Pároco da Paróquia Sagrado Coração de Jesus 

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