Falsas imagens de Deus

Atualizado em 16/11/20 às 09:135 minutos de leitura628 views

A parábola dos talentos (cf. Mt 25,14-30) traz como pano de fundo uma visão econômica. Mas não deve ser interpretada como uma lição sobre o uso do dinheiro ou como um elogio ao capitalismo, à habilidade de “lucrar” e de fazer “render” o dinheiro. Nem tampouco na interpretação literal e moralista. Isso provoca uma falsa imagem de Deus.

A parábola fala de três servos aos quais um homem, ao partir para uma longa viagem, confia os seus bens. Dois deles comportam-se bem, porque fazem render o dobro os “talentos” recebidos. O terceiro, ao contrário, por medo, enterra os talentos recebidos num buraco no chão. Ao regressar, o senhor daqueles servos os chama para ajustar contas com eles e, enquanto se agrada com os dois primeiros servos, fica desiludido com o terceiro servo.

Nossa atenção deve se voltar para a conduta desse terceiro servo, mas sobretudo o seu diálogo com o patrão. Ele começou justificando-se: “Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. Por isso, fiquei com medo e escondi o teu talento no chão” (vv. 24-25). Estas palavras deste servo refletem bem a atitude de muitos cristãos para os quais o Senhor é um “patrão” exigente, rígido, inflexível e arbitrário, que exige sufocadamente e sem medida, e nos faz sentir escravos unidos a um jugo insuportável de mandados e culpabilidade.

“Sei que és um homem severo”. Por que severo? Esse servo construiu uma imagem perversa do seu senhor, como muitas vezes fazemos com Deus. E são as suas próprias palavras que o julgam (Lc 19,22) pois a boca fala aquilo que está cheio o seu coração: “Por isso fiquei com medo, fui esconder o teu talento no chão”. Em nenhum momento esse servo age movido pelo amor. Não ama o seu senhor, tem-lhe medo. Não sabe o que significa uma fidelidade ativa, criativa e arriscada... quantos de nós cristãos não percebe que o cristianismo nos tempos atuais é chamado não tanto a “conservar” o baú das tradições mas a arriscar, procurar com coragem caminhos novos para acolher, viver e anunciar com criatividade o projeto de Jesus e do seu Reino.

“Fiquei com medo e escondi o teu talento”. A comunidade de Mateus sabia o que era ter medo da perseguição e da traição. Medo de Deus e da realidade hostil ao evangelho. Essa história do “medo de Deus” começa com Adão: “Ouvi teus passos no jardim. Fiquei com medo e me escondi” (Gn 3,10); medo de se expor ao risco de “fazer render”, frutificar aquilo que se recebeu; medo de acolher o dom como tal, como algo que derruba a lógica do meu/teu: tudo isso, não a severidade do patrão, paralisou o servo, tornou-o “mau e preguiçoso! [...] devias ter depositado meu dinheiro no banco, para que, ao voltar, eu recebesse com juros o que me pertence” (v.26-27). Aquele senhor revela o seu verdadeiro desejo: que o servo tivesse se esforçado, arriscado, investido o talento recebido e, com isso, ganhasse, lucrasse, rendesse e salvasse sua vida.

É insuficiente interpretar esses “talentos” confiados aos servos como qualidades da pessoa. Então, que significa ter talento? Também não é esta a verdadeira questão da parábola. Se permanecêssemos nessa interpretação das qualidades pessoais, poderíamos concluir que Deus é injusto: “Tirai-lhe o talento que tem e dai-o àquele que tem dez...” (v.28) A parábola não julga qualidades pessoais, mas o uso que fazemos delas. Quer tenhamos mais ou menos talentos, o que nos é pedido é que os coloquemos a serviço de nosso ser e a serviço de todos. O essencial é todos termos o mesmo talento: somos seres humanos.

O verdadeiro talento é o que há de mais humano em nós, o que constitui um ser humano. Os talentos que falam a parábola são as realidades que fazem cada pessoa ser mais humana e isso significa ser capaz de amar mais. E amar quer dizer servir os outros. A boa nova é portanto, colocar os talentos verdadeiros da vida, isto é, a vida como tal, pois o grande talento é a vida de Deus, a capacidade de amar, dar e receber amor. “Lucrar” nesse sentido é simplesmente ser, deixar-se amar, viver no amor. “Render” mais compaixão, bondade, sensibilidade, solidariedade e que vivamos sem medo, é isso que a parábola revela.

Quanto ao senhor dessa parábola não é um exemplo do modo de agir de Deus. O Deus de Jesus não atua numa lógica de prêmio/castigo. Ele nunca acreditou, nem nos apresentou o Pai como o senhor desta parábola, que age por interesse e rentabilidade pecuniária. O Deus de Jesus e nosso é bondade, acolhida, compaixão e misericórdia, não é um patrão duro, inflexível em suas decisões, pouco inclinado à indulgência e rancoroso, que “colhe onde não semeia e que ajunta onde não espalhou”, que arranca até o último centavo e que ameaça “jogar o servo lá fora, na escuridão, onde haverá choro e ranger de dentes” (v. 30). Deus é um “dom” que se oferece e compartilha, por isso a parábola dos talentos é muito mais um protesto contra uma estrutura social e religiosa centrada na cultura do prêmio/castigo, inclusão/exclusão, competente/incompetente...

Infelizmente alimentamos em nós, como aquele terceiro servo a imagem de um “deus” que é fruto de nossas projeções, muitas vezes carregado de traumas, medos, auto-exigências, busca de perfeição... Uns projetam a imagem do “deus do mérito”, que recompensa aqueles que se esforçam em “multiplicar talentos”; é a imagem do “deus” dos dois primeiros servos. Numa cultura na qual tudo se valoriza pelo resultado, pelo lucro. Em um ambiente social onde ninguém se move a não ser por um pagamento, onde tudo o que é feito deve trazer algum benefício, é quase impossível compreender a gratuidade que o evangelho nos pede. Se buscamos prêmios é sinal que não entendemos nada do evangelho. Outros projetam a imagem do “deus do medo”, duro, intransigente, que castiga... É o deus do terceiro servo.

Essas falsas imagens de Deus, no entanto, causam danos e afetam a vida em todas as suas dimensões: pessoal, familiar, social e espiritual. Podem gerar personalidades dependentes e submissas, neuróticas e ansiosas, medrosas e passivas, moralistas e perfeccionistas; ou talvez personalidades agressivas, dominantes, vingativas, controladoras. São o reflexo de uma imagem distorcida de Deus e o que é pior, chegamos a nos parecermos com o Deus que projetamos.

Esta distorção é resultado, muitas vezes, de uma educação rigorosa e moralista, produto de uma espiritualidade dualista que coloca a perfeição como o ideal de todo cristão e o menosprezo de tudo o que não é “espiritual”. Estas crenças religiosas geram uma fé insana porque nos afastam do Deus de Jesus e podem favorecer a dependência religiosa e o abuso espiritual.

Fiquemos com a imagem do Deus de Jesus, o Pai das misericórdias que nos revela o seu amor que se dá no seu Filho Jesus Cristo e no dom do seu Espirito vivamos sem medo aquilo que é o talento essencial em nossa vida: ser humano, amar.

 

Padre Assis Pereira Soares Pároco da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus.

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