Escutar Cristo Palavra

Atualizado em 08/03/20 às 22:495 minutos de leitura385 views

Seguimos avançando no caminho quaresmal, caminho interior, espiritual e de renovação pascal em que o cristão entrou, por graça, com o Batismo. Neste segundo Domingo o Evangelho (cf. Mt 17,1-9) faz-nos subir com Jesus o monte Tabor: viver a Quaresma se parece muito ao caminho que fez Jesus de subida a Jerusalém, caminho que o levará à Cruz. No fundo, a meta é a mesma: sua paixão, morte e ressurreição.

Esse caminho para Deus começou com Abraão (cf. Gn 12,1-4). A promessa que o Senhor faz a Abraão: terra e descendência, é aparentemente impossível de se cumprir. Abraão é demasiado ancião para abandonar sua terra e pôr-se a caminho até uma terra desconhecida, além disso, não tem filhos que lhe assegurem a descendência. Mas o patriarca Abraão corre o risco da fé, não “vê” ainda, mas “sabe”, se fia em Deus e caminha até onde o Senhor lhe indica.

O que tem Abraão que o une também a Jesus é para mim esta capacidade de “escutar”. Quando Abraão se põe a caminho o faz porque primeiro foi capaz de escutar e reconhecer a voz de Deus, em seu coração e em sua vida, que lhe disse: “Sai de tua terra... vai para terra que te mostrarei... Abraão marchou como lhe havia dito o Senhor”. E isso mesmo é o que Jesus faz. “Tudo o que ouvi de meu Pai eu os dei a conhecer”. (Jo 15,15) Jesus primeiro escutou e depois se pôs em caminho, em ação.

“Este é o meu Filho... Escutai-o!” (v. 5) O coração da liturgia deste Domingo é este convite a escutar Cristo-Palavra, que cumpre em si a Escritura representada por Moisés e Elias: Palavra única do Pai, Palavra dura também, que da doçura do monte nos impele a descer para o dia-a-dia da vida.

A narrativa da transfiguração situa-nos numa “teofania”, ou seja, uma manifestação de Deus. Neste texto aparecem os elementos que no Antigo Testamento descrevem os relatos teofânicos: o alto de um monte, uma voz do céu, aparições, vestes brilhantes, a presença de uma nuvem no encontro com o divino, o que também gera medo nos que estão presentes. O centro desse relato é ocupado pela voz vinda de uma estranha “nuvem luminosa”, símbolo também utilizado na Bíblia para falar da presença sempre misteriosa de Deus que se nos manifesta e, ao mesmo tempo, nos oculta.

A voz diz: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” (v. 5) Os discípulos não deverão confundir Jesus com ninguém, nem sequer com Moisés e Elias, representantes e testemunhas do Antigo Testamento. Só Jesus é o Filho amado de Deus, o que tem o seu rosto “resplandecente como o sol”. Noutros tempos, Deus tinha revelado a sua vontade através das “dez palavras” da Lei. Agora a vontade de Deus resume-se e concretiza-se num só mandamento: “escutar Jesus”. O escutar estabelece a verdadeira relação entre os seguidores e Jesus.

“Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra” (v. 6), surpreendidos por aquela experiência tão próxima de Deus, mas também assustados pelo que ouviram: poderão viver escutando só Jesus, reconhecendo apenas nele a presença misteriosa de Deus? É assustador ouvir apenas Jesus. É o próprio “Jesus quem se aproxima, tocou neles e disse: Levantai-vos, e não tenhais medo”. (v.7) Ele sabe que os discípulos necessitam experimentar a sua proximidade humana: o contato da sua mão, não só o resplendor divino do seu rosto.

Provavelmente, é o medo o que mais paralisa os cristãos no seguimento fiel a Jesus Cristo. Na Igreja atual há pecado e fraqueza, mas, sobretudo, existe o medo de correr riscos. Não é difícil citar alguns desses medos: Temos medo do novo, como se “conservar o passado” garantisse a fidelidade ao Evangelho. O Concílio Vaticano II afirmou que na Igreja deve haver “uma constante reforma”, pois “como instituição humana, necessita-a permanentemente”. Mas o que percebemos é que o que move nestes momentos a Igreja não é tanto um espírito de renovação, mas um instinto de conservação, como disse o documento de Aparecida “uma pastoral de manutenção”.

Também temos medo de assumir as tensões e conflitos que surgem com a busca de fidelidade ao Evangelho. Calamo-nos quando deveríamos falar; Temos medo de colocar a misericórdia acima de tudo, esquecendo que a Igreja não recebeu o “ministério do julgamento e da condenação”, mas o “ministério da reconciliação”. Há medo de acolher os pecadores como Jesus fez. Dificilmente se dirá hoje da Igreja que ela é “amiga dos pecadores”, como se dizia de Jesus.

Só o contato vivo com Cristo nos poderia libertar de tanto medo de tantos temores. Jesus convida os seus discípulos a levantarem-se e acompanharem-no tomando novamente o caminho da vida sem medo. Também um dia Moisés teve de descer do Sinai e se encontrou com a realidade de um povo que havia fabricado um bezerro de ouro (cf. Ex 32, 1-30); Elias também desceu do Horeb (cf. 1Re 19) sabendo que os soldados de Jezabel o perseguiriam pois queriam impor-lhe os deuses cananeus. Jesus precisa descer do monte e prosseguir no caminho para Jerusalém. A transfiguração é protótipo de seguimento, quem quiser segui-lo é necessário passar pelo sacrifício da própria vida. Vencer os temores, medos e tristezas. Aprender a não ter medo do sofrimento que implica a missão.

Assim como o deserto, na espiritualidade quaresmal, a montanha não é um lugar geográfico. É um lugar humano. Onde quer que se reúna a comunidade cristã, há um Tabor. Mas, é preciso descer do monte, baixar à vida e encontrar os desfigurados da humanidade: doentes, pobres, sofredores e necessitados, nos quais Cristo nos espera para transformar-nos e para transfigurá-los. Os três discípulos testemunhas da transfiguração, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e enfrentar o mundo e seus problemas. Eles representam todos que vivem de olhos postos no céu, alienados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para renová-lo e transformá-lo. No entanto, ser cristão obriga-nos a regressar ao mundo, obriga-nos a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar a nossa contribuição para o aparecimento de um mundo transfigurado e feliz.

Padre Assis Pereira Soares – Pároco da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus.

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