Administradores assassinos

Postado em 03/10/20 às 10:396 minutos de leitura547 views

Há duas maneiras de ler “a parábola da vinha do Senhor” (cf. Mt 21,33-43) que Jesus conta, tendo como cenário o Templo de Jerusalém e seu auditório formado pelos líderes religiosos e do povo de Israel. Podemos lê-la numa visão histórica ou narrativa ou dá-la uma interpretação mais atual. Esta segunda nos interessa mais, mas não podemos compreendê-la sem certa compreensão histórica.

A parábola dirigida diretamente para aquele auditório preciso pode-nos parecer um texto para outros tempos. Porém, também hoje, inclusive na Igreja precisamos estar atentos, porque o Maligno coloca em alguns corações a ambição do poder e o desejo de “apossar-se” da propriedade de Deus. Jesus tal qual o profeta Isaías (séc. VII a.C.), quer “cantar para o meu amado o cântico da vinha”. (cf. Is 5,1-7)

Jesus começou falando-lhes de um homem que plantou uma vinha e a cultivou com um carinho todo especial e cria um clima de expectativa, porque todos conhecem o “cântico de amor da vinha”, composto pelo profeta Isaías; um poema, dos mais belos textos do Antigo Testamento. Mas, que não se trata apenas de um simples texto literário, porque a poesia é sentimento puro, e no profeta poeta Isaías, teologia pura.

Na cultura judaica e na Bíblia, a figura da vinha, como aliás a da esposa, se tornam como que um exemplo da história da salvação, do modo de agir de Deus perante seu povo Israel e a humanidade. O profeta viu nesta imagem um símbolo privilegiado para expressar a história de amor que Deus quis escrever com o seu povo.

Mas, a vinha escolhida e amada é depois rejeitada e abandonada, porque não deu ao Senhor o que Ele “esperava, uvas boas, mas produziu uvas selvagens”. E o Senhor pronuncia esta sentença sobre ela e contra ela: “Vou desmanchar a cerca e ela será devastada; vou derrubar o muro, e ela será pisoteada. Vou deixa-la inculta e selvagem: ela não será podada nem lavrada, espinhos e sarças tomarão conta dela; não deixarei as nuvens derramar a chuva sobre ela”. (Is 5, 5-6) O Senhor abandonará Israel à sua própria sorte, pois “esperava dele frutos de justiça – e eis injustiça; esperava obras de bondade – e eis iniquidade” (Is 1,7).

Hoje o auditório ao qual Jesus dirige a sua parábola é diferente e ao mesmo tempo, parecido. São os responsáveis pelos sistemas econômicos e financeiros, os que exercem o poder político, os que escrevem as leis e impõem os caminhos e até os valores. Todos eles têm as mesmas cartas credenciais: ambição, mentira e corrupção. Ambição e corrupção se dão as mãos na atitude dos “vinhateiros homicidas” ou administradores da vinha. Todas as suas ações são fonte de processos desumanizantes que abrem feridas em tantos rostos humanos: a pobreza, a injustiça, a marginalização... Presenças da dor e do sofrimento, causados pelos poderosos de plantão. As pessoas não contam, elas são quando muito um dado em estatísticas e se converte em um objeto sem valor ante as ambições desses “administradores assassinos”. Eles são a imagem de toda ambição e cobiça: querem apossar-se da propriedade da vinha, daquilo que não lhes pertence e o fazem de um modo cruel: “agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram... e, ao verem o filho do dono da vinha... agarraram-no, jogaram-no para fora da vinha e o mataram”. (Mt 21, 35-39)

Para Jesus, o problema não está na fertilidade da vinha, pois ela produz uvas boas. É precisamente por isso que os administradores assassinos querem apossar-se dela. O problema está no poder que uma vinha tão produtiva confere. Por isso eles querem apoderar-se da vinha; e para fazê-lo recorrem a todos os meios, até matar o filho do dono. Essa atitude nos fala hoje de alguns que não querem a vida para todos, apoiam as discriminações sociais, favorecem as exclusões dos que não contam e abrem as portas a todo tipo de manipulações em detrimento da dignidade de todos.

São Mateus utiliza cinco verbos para mostrar o sonho que Deus sempre teve de um mundo belo, reflexo da sua glória: plantou, cercou, cavou, construiu, arrendou. O que mais podia Ele fazer por sua vinha? Deus não abandona a obra de suas mãos. Apesar da recusa e oposição aos seus planos de salvação, Ele continua amando a sua vinha e se faz presente no ministério profético e continua manifestando sua misericórdia. Mas, Ele tirará sim o seu Reino das mãos dos administradores ambiciosos, corruptos, injustos e assassinos, e o dará a quem se compromete a assumir o seu projeto de amor e salvação: “Por isso eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos”. (Mt 21,43)

Às vezes pensamos que esta ameaçadora parábola aplica-se ao povo do Antigo Testamento, e não para nós, que somos o povo da Nova Aliança e temos já a garantia de que Cristo estará sempre conosco. Mas isso é um grande equívoco. A parábola dos administradores assassinos também está a falar de nós. Deus não pode abençoar um cristianismo estéril do qual não recebe também os frutos que espera. Não se identifica com as nossas incoerências, desvios, ambições desmedidas, corrupção e infidelidades. Ele também agora quer que os trabalhadores indignos da sua vinha sejam substituídos por outros que produzam frutos dignos do Reino de Deus.

Deus está decepcionado! Está claro que o dono da vinha vai confiá-la a outros administradores que sejam fiéis. Tenhamos consciência de que esta decepção de Deus e sua ameaça de nos tirar a posse do Reino de Deus atinge a todos. Quando hoje celebramos a memória de São Francisco de Assis, patrono da ecologia e que ouviu o crucificado lhe dizer: “reconstrói a minha Igreja”, devemos nos questionar: Que Igreja construímos? Que categoria de cristianismo estamos vivendo? É um cristianismo estéril, distraído em discussões doutrinárias anacrônicas, que nos impedem de ver o essencial, sem coragem de ouvir o apelo a uma conversão radical ao Evangelho? Somos os cristãos de hoje defensores da justiça e do direito dos pobres? Como atuamos diante da crise econômica, ecológica, moral e de valores que afeta a todos?

crise ecológica, pela qual estamos passando, sobretudo no nosso país onde a Amazônia e o Pantanal ardem em chamas, é a crise do próprio ser humano. A vinha do Senhor, a terra, a nossa “casa comum” está em ruínas, devastada devido a maneira como o ser humano a tratou, arrancando dela pedaços para satisfazer seus ambiciosos interesses egoístas e não se dá conta que está destruindo seu próprio espaço vital.

As consequências trágicas estão presentes por toda parte: enchentes, secas prolongadas, desertificação, desaparecimento de florestas, rios assoreados e poluídos, ar irrespirável, acúmulo de lixo urbano, tóxico e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis, extinção de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade, escassez de alimento, proliferação de doenças... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra.

Os cristãos somos chamados a ser “sacramento” desse cuidado amoroso do Pai por sua vinha, nossa casa comum; convocados a proclamar a dignidade das criaturas sem suplantar o Criador. A Igreja deve ser profecia encarnada do projeto de salvação de Deus, denunciando, sem paliativos, como o faz a parábola, os propagadores de morte e da destruição e que querem se apoderar da vinha do Senhor e sem Deus, toda injustiça é possível.

Padre Assis Pereira Soares Pároco da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus.

 

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