A verdadeira religião

Atualizado em 25/06/19 às 12:526 minutos de leitura401 views

Por: Pe. José Assis Pereira Soares. Vigário Geral

Em que consiste a religião autêntica? Qual é o culto verdadeiro, que agrada a Deus? A verdadeira religião está no coração da pessoa que escuta e põe em prática a Palavra de Deus. São Tiago nos diz em sua carta: “Recebei com humildade a Palavra que em vós foi plantada... sedes praticantes da Palavra e não somente ouvintes.” (Tg 1,21-22)

A língua hebraica distingue entre palavra e ato, escutar e por em prática a Palavra. E por isso não se pode separar o escutar do fazer, nem o fazer do escutar. “Moisés falou ao povo, dizendo: Agora, Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que fazendo-o, vivais... Guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo. Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática.” (Dt 4,1.6)

O “Decálogo” é chamado “as dez palavras” que se tem de escutar e por em prática. Essas “dez palavras”, que resumem toda a lei de Moisés, Deus as pronunciou para o bem de seu povo e, portanto, possuem características propriamente divinas. Enquanto os outros povos se regem por leis e preceitos surgidos da sabedoria e vontade humanas, o “Decálogo” para os Israelitas tem a sabedoria mesma de Deus. Uma sabedoria nada teórica, mas que envolve a vida e a penetra em todas as suas expressões são palavras para se viver.

O cristão tem de ser obediente ou dócil à Palavra, de modo que não só a escute, mas também a ponha em prática. Qual é essa Palavra? Fundamentalmente o amor a Deus e o amor ao próximo, coração da verdadeira religião cristã.

Em nenhuma outra ocasião Jesus pôs sob suspeita de maneira tão radical a lei como nesta passagem do Evangelho se São Marcos (cf. Mc 7,1-23). É interessante a reflexão de Jesus à pergunta feita pelos fariseus: “Por que não se comportam os teus discípulos segundo a tradição dos antigos, mas comem o pão com mãos impuras?” (v. 5) No debate cerrado entre Jesus e os “fariseus e escribas” acerca de tradições e a Lei, Jesus denuncia a hipocrisia e apresenta um novo critério: é importante viver a Palavra na sua plenitude, com autenticidade e coerência entre o “dizer” e o “fazer”: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam; pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos’. (Mc 7,6-7)

Jesus com esta citação do Profeta, não só denuncia um culto sem alma, feito de exterioridades ocas e vazias, mas também censura o abandono da Lei de Deus em troca do zelo por preceitos ou costumes meramente humanos. Perder de vista o fundamental, o que Deus quer, para centrarem-se em coisas de menor importância, meras tradições.

Jesus confirma assim o pensamento dos profetas contra o “formalismo” na prática da religião. Põe em evidência a deformação que leva a pessoa a "parecer boa" mais que "o sê-lo de verdade"; o preferir o cumprimento "externo" da lei à mudança interna, real do coração; o pôr mais atenção em praticar com meticuloso cuidado rubricista os "ritos" que procurar a sinergia, a união dos lábios, mente e coração com o Espírito de Deus.

Em seguida Jesus ensinou que o que sai do interior da pessoa é o que conta, não o externo. Porque do interior das pessoas saem as obras boas e as más. Então deu o Mestre um “catálogo” das maldades que saem do coração humano: “más intenções, imoralidades, roubos, assassinatos, adultérios, ambições, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo” (vv. 21-22). Que retrato de uma sociedade corrompida! Não se parece esta descrição ao que está ocorrendo em muitos ambientes do mundo e em nossa própria sociedade brasileira? Talvez também até nós estejamos um pouco contaminados destas maldades… Se olharmos, honestamente para nós e ao nosso redor, talvez não tenhamos dificuldade em admitir isso que o Senhor nos diz!

A carta de São Tiago propõe claramente a religião que Deus quer: o amor aos pobres e a caridade “e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,27). Quer dizer os cristãos autênticos são aqueles que demonstram com suas obras o que creem e professam com sues lábios, ou celebram em sua liturgia. “Escuta e vida” representa o programa diário do discípulo, onde a Palavra, primeiro escutada, se torna depois experiência e celebração da vida. Infelizmente temos de reconhecer com frequência que “dizer é uma coisa, fazer é outra”, isto é, entre a escuta e a vida a distância é grande.

O movimento farisaico era uma realidade perigosa para os cristãos do tempo de Marcos. Mas o cristianismo, desde seus primeiros tempos, teve que optar entre a fidelidade ao Evangelho de Jesus e o cumprimento de algumas tradições judaicas. Podemos pôr aqui só alguns exemplos muito conhecidos; o cumprimento do descanso sabático, a lei do talião, a necessidade de circuncidar ou não aos não judeus convertidos ao cristianismo, a questão da pureza legal etc. Todos conhecemos a atitude de Jesus em todos estes casos através dos evangelhos e sabemos que os apóstolos tiveram que sofrer muito para manter-se fieis ao Mestre.

O importante é que também nós, agora saibamos optar pela fidelidade ao Evangelho de Jesus, frente a certo tradicionalismo estéril, certo devocionismo e legalismo vazio ou relativismo moral. Não queiramos tapar nossa falta de misericórdia, e de amor generoso e desinteressado a Deus e ao próximo, com o simples cumprimento de ritos, rezas, penitências e sacrifícios. Nossa principal tarefa, ao longo de toda nossa vida é purificar nosso coração, tratando de fazê-lo o mais possível semelhante ao coração de Jesus e ser uma religião do coração.

Sendo o coração o centro da pessoa. O coração visto não só como fonte de amor, afetividade, mas também como sede da razão, dos sentimentos, da vontade, da consciência, da decisão. O cristianismo não só do futuro, mas do presente, está pedindo para ser uma religião do coração.

A autenticidade deveria ser a carteira de identidade de todo cristão. Mas, o que significa ser autêntico? Na concepção cristã, ser autêntico se entende como um ideal de ser um mesmo e não outro, não uma máscara. Neste sentido, "autêntico" é quem não vive de aparências. É fácil e tentador querer viver de aparências, é uma força tentadora.

O farisaísmo é tentação permanente para o cristão. Uma religião aspergida por atitudes farisaicas, mera exterioridade que coloca práticas ritualistas tradicionais acima da própria lei do amor, não morre facilmente, resiste no tempo até os dias atuais. Temos que estar alerta sobre a ilusão de uma religião refúgio de pessoas que dizem, mas não fazem. Tal cristianismo é ficção e uma indigna caricatura da religião, com o consequente descrédito, porta de entrada para a indiferença religiosa, o ateísmo e a descrença...

O apelo constante do Papa Francisco é de uma permanente revisão das nossas práticas religiosas para verificar a sua validade e autenticidade. O Santo Padre diz-nos: “sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionando mais evangelização do mundo atual que à autopreservação”, para que a vida da Igreja se torne ainda mais próxima das pessoas, e se torne verdadeiro espaço de viva comunhão e participação e se oriente completamente para a missão de semear a alegria do Evangelho de Cristo. (cf. Evangelii Gaudium. n. 27)

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