A santidade é para todos

Postado em 31/10/20 às 14:316 minutos de leitura438 views

A doutrina do “pequeno número dos que são salvos” teve muitos partidários na Igreja e não contribuiu em nada para dar ao Evangelho o seu aspecto de Boa Nova. A festa litúrgica de todos os Santos e Santas denuncia a falsidade desta interpretação desastrosa da fé cristã: tanto que nesta festa, somos convidados a nos alegrar com a multidão que vai muito além da lista de personagens ilustres e heróis e heroínas propostos pela Igreja à nossa imitação.

Há uma infinidade de maneiras de seguir Jesus. Sem dúvida, a Igreja ainda não terminou de reconhecer e admitir novas e inesperadas formas de “santidade”. A santidade da Igreja é inesgotável e sua última palavra será no final dos tempos. Ela será perfeita somente quando for “católica”, ou seja universal, o que supõe incorporar todos os valores de todos os seres humanos e de todas as culturas, ao longo de toda a história da humanidade ou seja, se escaparmos aos nossos particularismos.

Compreendemos assim, que a festa de todos os Santos e Santas não é uma festa de alguns apenas, mas de todos nós. Pois em Deus somos todos santos. Claro que, num primeiro plano estão os que foram oficialmente “canonizados”, pois marcaram o seu tempo e o seu meio. Mas, ao lado deles, temos uma multidão de anônimos e desconhecidos: esta “multidão imensa” de que nos fala o Apocalipse de São João (cf. Ap 7,2-4.9-14): “Vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro...”. (v. 9)

A multidão dos tempos passados, mas também, as multidões do presente, marcadas igualmente pela santidade, que é a presença de Deus em cada um de nós, no mais das vezes, se encontra misturada com muitas outras coisas. É que somos seres ambíguos, habitados por desejos contraditórios. Deus é que nos santifica. O nosso papel se limita a deixá-lo fazer, o que nem sempre é tão fácil.

No pensamento hebraico, quando se diz que uma pessoa é santa não significa que ela seja apenas virtuosa, que tenha um comportamento impecável, mas sim, que essa pessoa é diferente, é “outra”, que manifesta sua alteridade ao mundo, revela uma maneira original de viver, uma outra maneira de amar. Significa uma pessoa que introduz amor onde há ódio, que revela paciência onde existe intransigência, que manifesta compreensão onde existe revolta, comunica paz onde existe violência, deixa transparecer uma presença alegre onde impera a tristeza.

Por ter sua origem em Deus, a santidade é um dom, é a vocação originária de cada cristão batizado. Por esse motivo, todos somos chamados a nos tornarmos santos: “Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação.” (1Tes 4,3)

Muitas pessoas têm uma ideia equivocada da santidade. Estávamos habituados a ver os Santos e Santas ligados a lendas piedosas, a histórias fantásticas, à proteção contra alguns males; eram vistos como heróis inatingíveis, pessoas mais dignas de elogio e admiração do que imitação. No entanto, os Santos e Santas são pessoas de carne e osso, sujeitos às imperfeições humanas. Como todos os seres humanos lutaram com seus pecados, alguns foram até grandes pecadores, pessoas que assumiram seu lado de sombra, que sofreram crises e dilemas, para ao final ser transformados pela graça de Deus.

Ser Santo e Santa, portanto, não é para campeões de perfeição, mas para pecadores que se reconhecem como tais e se deixam conduzir pela Graça de Deus e pelo clamor que vem da alteridade desfigurada de todo aquele que sofre e necessita caridade e atenção. A santidade às vezes, não se manifesta em grandes obras nem em sucessos extraordinários, mas é feita de amor a Deus e aos irmãos. Amor fiel até ao esquecimento de si mesmo e à entrega total aos outros.

A verdadeira santidade é uma graça, é a obra que Deus faz gratuitamente em nós. Uma existência vivida com muita fé e muita humanidade. Uma vida que expressa sentimentos e atitudes de bondade e compaixão, que se concretiza em obras de justiça, caridade e solidariedade. Porque assim é o Deus dos cristãos, assim Ele atua e assim quer que sejam e atuem seus filhos e filhas. Assim é a santidade de Deus e assim se reflete em seus Santos e Santas. A estas pessoas estão dirigidas as bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-12). Para que esta ação gratuita de Deus opere a santidade em nós, é preciso acolhê-la agradecidamente e exercê-la responsavelmente. A santidade de Deus é ser bom com todas suas criaturas e fazê-las boas. Nossa santidade é o resultado da bondade e misericórdia de Deus por nós. O que podemos fazer é apenas deixar que essa bondade de Deus se reflita e atue em nós. Mas certos de que a santidade é puro dom de Deus e obra do Espírito Santo nas pessoas.

Um elemento muito importante de leitura e interpretação das bem-aventuranças do Reino (cf. Mt 5,1-12) seria sermos mais criativos e proféticos ao interpretá-las e fazermos a tentativa de traduzir para uma linguagem atual este texto catequético da comunidade de Mateus ou acrescentado pela tradição, enriquecendo nossa compreensão com o “espírito” que emana dele.

Tendo em conta o sentido “sapiencial”: que ensina a viver ou o que dá sentido à vida; e o sentido de “escolha” ou “opção”. Alguns especialistas têm feito uma tradução das bem-aventuranças nas quais sempre é determinante o verbo “escolher”. É verdade, no entanto, que o termo “escolher” não está no texto original, mas o implica necessariamente. Nas bem-aventuranças, por seu tom sapiencial são muito importantes as escolhas: escolher ser pobre e não rico, escolher a justiça e não outra coisa; escolher a paz. Aqui estão representados os valores do Reino, os valores da vida na santidade de Deus.

O sentido primeiro e mais elementar das bem-aventuranças é a felicidade. Mas elas são paradoxais: como é possível proclamar felizes e bem-aventurados os pobres, os que choram, os famintos de justiça, os perseguidos...? No entanto as bem-aventuranças saíram da boca de Jesus em uma sociedade e numa cultura de morte semelhante à nossa, na qual vigorava a lei da força, na qual importava a riqueza, na qual a violência estava a serviço do poder.

Os Santos e Santas puseram em prática na sua vida o programa do Reino de Deus contido nas bem-aventuranças onde encontramos a resposta à pergunta: Como ser cristão neste mundo tão conflitivo? O caminho é a pobreza de espírito, a mansidão, o sofrimento suportado por amor, o caminho da justiça e do perdão, o caminho da paz enfim, o estilo de vida do próprio Jesus: seu amor e obediência filial ao Pai, sua compaixão frente à dor humana, sua proximidade aos pobres, sua fidelidade à missão, seu amor até à entrega generosa de sua vida.

As bem-aventuranças desvelam o verdadeiro rosto dos Santos e Santas. Ser santo é ser humano por excelência. Para humanizar o nosso tempo, os Santos e Santas revelam atitudes e critérios que nos fazem mergulhar de cheio nos desafios e problemas que afligem grande parte da humanidade. Os Santos e Santas de hoje e de sempre, não são encontrados nos pacíficos ambientes dos monastérios ou templos ou ainda dentro dos limites da instituição eclesial, mas nas encruzilhadas da pobreza e da injustiça, nas “periferias existenciais”; perigosa proximidade com o mundo da violência e da marginalidade, em situação de vulnerabilidade e risco, onde a luz do amor e da caridade brilhará mais do que nunca.

Enfim, podemos dizer que a santidade é um caminho de bondade, felicidade e comunhão que Deus realiza em nós. Na realidade, um Santo ou Santa não é outra coisa que uma pessoa boa. Porque ser Santo ou Santa não é mais que ser o que temos que ser, mas sempre com a ajuda da graça divina.

Padre Assis Pereira Soares Pároco da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus.

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