Voltemos ao primeiro Natal

Atualizado em 25/06/19 às 09:467 minutos de leitura463 views
O sentido do Natal é inesgotável. São muitos os textos que falam do Natal: no sentido literal ou figurado, de diferentes formas. Depois de dois milênios segue o Menino Jesus inspirando artistas, poetas, místicos e mobilizando o mundo, pois mesmo inconscientes crentes e não crentes olham para o nascimento de Jesus como um poema, um acontecimento histórico ou um desafio a ser vivido. Hoje, nesta noite santa do Natal do Senhor, creio que devemos somente abandonar-nos numa silenciosa e alegre contemplação deste mistério. Tenhamos a mesma atitude de Maria, de José e dos pastores que no presépio estão sempre em reverente atitude de contemplação e adoração diante do Emanuel. Pois o mistério que celebramos é grande de mais para expressá-lo em palavras. A palavra parece apagar-se diante do evento. A esta contemplação nos convida a Sagrada Liturgia, mas deixemo-nos igualmente guiar pelo teólogo Lucas que com simplicidade nos leva ao coração daquela noite santa com sua narrativa encantadora do nascimento de Cristo (cf. Lc 2,1-14). Lucas, como um bom historiador criou deliberadamente um quadro ao mesmo tempo histórico e teológico para os acontecimentos que ia narrar. Ele nada precisa inventar para sua peculiar teologia, oferece tanto no nascimento de Jesus como no inicio de seu ministério uma datação detalhada e cuidadosa daquele momento histórico. Jesus não nasceu nem apareceu em público naquele indefinido “era uma vez”, típico das lendas e dos mitos; mas pertence a um tempo, que se se pode datar com precisão, e a um ambiente geográfico exatamente definido: o universal e o concreto tocam-se mutuamente. “Aconteceu naqueles dias, César Augusto publicou um decreto, ordenando o recenseamento de toda a terra. Este primeiro recenseamento foi feito quando Quirino era governador da Síria.” (vv. 1-3) É obvio que as referências do nosso historiador quanto ao tempo são marcadas pela sua preocupação teológica de apresentar o nascimento do Salvador, em contraste com o imperador romano, Augusto, que se ufanava do título de “salvador”, com toda conotação divina. Lucas poderia não dispor de dados muito precisos, mas o historiador teólogo não precisava de mais pormenor para que o nascimento de Jesus ficasse enquadrado na história geral. De acordo com o historiador do século I Flávio Josefo, o recenseamento ocorreu no ano 6 a.C. data provável do nascimento de Jesus, sob o governador da Síria Quirino, por encargo do imperador. “Todos iam registrar-se cada um na sua cidade natal. Por ser da família e descendência de Davi, José subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, até a cidade de Davi, chamada Belém, na Judéia, para registrar-se com Maria, sua esposa, que estava grávida.” (vv. 3-5) Por várias fontes sabemos que os interessados deviam apresentar-se na localidade onde tinham as terras de sua propriedade. De acordo com isso, podemos supor que além de ser o lugar de origem de José, da casa de Davi, ele possuísse um terreno em Belém, pelo que tinha de ir lá para a cobrança de impostos. Pensa-se também que ele antes se teria deslocado da sua Belém natal para Nazaré, pois dali poderia muito bem ir trabalhar nas obras da cidade de Séforis, apenas 5Km de Nazaré. Belém, em hebraico bet-léhem, significa “casa do pão”; ali nasce o “Pão da Vida”. É também o lugar preciso do nascimento de Jesus segundo a profecia de Miqueias: “Tu, Belém de Éfrata, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel.” (cf. Mq 5,1-4) “Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu Filho primogênito.” (vv. 6-7a) O texto deixa ver, como é compreensível, que estiveram em Belém durante algum tempo antes de o Menino nascer. De fato é inverossímil a aventura de empreenderem uma viagem de cerca de 150Km nas vésperas do parto. Se nos ativermos às fontes, fica evidente que Jesus nasceu em Belém e cresceu em Nazaré. “Ela enfaixou (o Menino) e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria.” (v. 7) Fica patente a extrema humildade em que quis nascer o Senhor do mundo. Segundo uma tradição que vem do séc. II e III, o lugar do nascimento de Jesus teria sido uma gruta fora de Belém, por não haver lugar na hospedaria ou “na sala de cima”, o aposento superior das casas, que tanto podia servir de sala como de dormitório. É estranho que, em qualquer dos casos, não coubesse mais duas pessoas, dada a boa hospitalidade oriental. Mas, para a hora do parto, não haveria o mínimo de condições de privacidade, por isso se recolhem para uma daquelas grutas da região usadas como estábulo. Santo Agostinho interpretou o significado da “manjedoura”, ela é o lugar onde os animais encontram o seu alimento. Agora, porém, está na manjedoura Aquele que havia de apresentar-se a si mesmo como o verdadeiro pão descido do céu, como o verdadeiro alimento de que o homem necessita para ser pessoa humana. É o alimento que dá ao homem a vida verdadeira: a vida eterna. Dessa forma, a manjedoura torna-se uma alusão à mesa de Deus, para a qual é convidado o homem a fim de receber o pão de Deus. Um relato desse não se inventa, pois não seria um lugar digno para o Messias que se esperava. É impressionante como para o Senhor de toda a Criação não havia na terra um lugar digno! “Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho.” (v. 8) É significativo que os primeiros a quem o Messias se manifesta seja essa gente que pelo seu trabalho tinham de viver à margem da sociedade.  Desprezados e sem valor aos olhos da sociedade judaica, que os incluía entre os “publicanos e pecadores”, pois as suas condições de vida, os lugares onde eram obrigados a permanecer, e a sua ignorância religiosa impediam-lhes de observar todas as prescrições legais e rituais de purificação religiosa e, por isso, eram considerados impuros. Os pastores são uma prova de que Deus atrairá para si os que andavam afastados dele e nunca mais os abandonarão. Os pastores representam os pobres de Israel, os pobres em geral: os destinatários privilegiados do amor de Deus. Jesus nasceu entre os pastores; Ele é o grande Pastor da humanidade. “O anjo disse aos pastores: ‘Não tenhais medo! Eu vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor (...) Quando os anjos os deixaram (...) os pastores disseram entre si: Vamos já a Belém!” (vv. 10.15-16)  E nós também neste Natal, digamos uns aos outros: Voltemos a Belém! Voltemos à simplicidade e à pureza das origens, do primeiro Natal; descubramos o berço em que nascemos na fé. Afastamo-nos tanto de Belém; de nossa fé e talvez tenhamos deixado que nossa vida se sobrecarregasse de raciocínios complicados e de tantas coisas que destoam com a leveza daquele “Menino do presépio”. Peçamos ao Senhor que nos ajude a descobrirmos o autêntico e verdadeiro “espírito do Natal”. Hoje a celebração do Natal está sendo cada vez mais superficial e material, cujo brilho ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus. À medida que se vai impondo um modelo não cristão e comercial de celebrar o Natal, se vai perdendo sua riqueza profunda e seu encanto. É preciso redescobrir o valor das tradições cristãs do Natal, se não quisermos perder irresponsavelmente riquezas acumuladas pela humanidade ao longo dos séculos. Com os pastores vamos a Belém nesta noite abençoada, ouçamos mais uma vez os anjos a cantar: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados.” (v. 14) Que as luzes do Natal não ofusquem nem escondam a feia realidade das nossas periferias existenciais e humanas, mas iluminem os que vivem nas sombras. Que as comidas e doces das nossas mesas não afastem, mas saciem a amargura desolada dos que hoje têm fome, pois a corrupção desviou o que era destinado para acabar com a pobreza e a fome. Que a degustação dos vinhos não nos embriaguem e entorpeçam as nossas consciências ante a Justiça e o Direito fundamental à Vida digna, tantas vezes negado. Que a alegria dos abraços que trocamos abram novos espaços para haver Amizade onde a mentira e a inveja deram lugar à Verdade e o Amor. E que cresça a certeza de que não estamos sós, por que “no Menino de Belém, Deus vem ao nosso encontro para nos tornar protagonistas da vida que nos rodeia. Oferece-se para que o tomemos nos braços, para que o levantemos e abracemos; para que n’Ele não tenhamos medo de tomar nos braços, levantar e abraçar o sedento, o forasteiro, o nu, o doente, o recluso (cf. Mt 25, 35-36)... Neste Menino, Deus convida-nos a cuidar da esperança... Comovidos pelo jubiloso dom, Menino pequenino de Belém, vos pedimos que o vosso choro nos desperte da nossa indiferença, abra os olhos perante quem sofre. A vossa ternura desperte a nossa sensibilidade e nos faça sentir convidados a reconhecer-Vos em todos aqueles que chegam às nossas cidades, às nossas histórias, às nossas vidas. Que a vossa ternura revolucionária nos persuada a sentir-nos convidados a cuidar da esperança e da ternura do nosso povo.” (Papa Francisco) (*exegese, texto adaptado de Bento XVI no seu livro A Infância de Jesus)

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