Nossa família de Nazaré

Atualizado em 25/06/19 às 09:456 minutos de leitura452 views
A poucos dias do Natal a tradição litúrgica cristã reserva este primeiro Domingo depois do Natal à Sagrada Família, a nossa família de Nazaré. É que a Igreja e sua Liturgia querem que contemplemos a intimidade familiar em que se desenvolveu humanamente o Salvador do mundo. Sendo Jesus verdadeiro homem, ao mesmo tempo que era Deus, cresceu com características idênticas a como o faz qualquer menino. Cada família tem diante de si o ícone da família de Nazaré no episódio narrado por São Lucas (cf. Lc 2, 41-51) onde Jesus aos doze anos quis permanecer no templo de Jerusalém, sem que seus pais o soubessem e preocupados, ali o encontram depois de três dias, discutindo com os doutores da Lei. Quando a mãe lhe pede explicações para o seu ato, Jesus responde que deve estar na casa do seu Pai. Para Lucas, a estada em Belém da Sagrada Família, foi transitória. O tempo de Nazaré é um tempo de intimidades profundas, de silêncio, oculto nesta desconhecida cidade. Ali foi onde Jesus se criou, onde o menino crescia e tornava-se, cheio de sabedoria e graça de Deus (cf. Lc 2, 39-40). Ali Jesus se faz homem, sua personalidade psicológica se imprime e se mescla nas tradições socioculturais e religiosas de seu povo, e também ali amadurece um projeto que um dia deve levar a cabo. “A encarnação do Verbo em uma família humana, em Nazaré, comove com a sua novidade a história do mundo. Precisamos mergulhar no mistério do nascimento de Jesus [...] e penetrar nos trinta longos anos em que Jesus ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração e a tradição crente do seu povo e formando-se na fé dos seus pais, até fazê-la frutificar no mistério do Reino. Esse é o mistério do Natal e o segredo de Nazaré, cheio do perfume da família! É o mistério que tanto fascinou [...] e do qual bebem as famílias cristãs para renovar sua esperança e alegria.” (Papa Francisco, Amoris Laetitia n. 65) José soube atuar, mesmo não sendo o pai natural, foi solícito, trabalhador, compreensivo e humilde; quis sempre colocar ternura, coração e muito amor nas relações familiares e, mesmo que com Maria não entendessem muitas coisas que ouviam do seu Filho ou que se passava entre eles, continuavam confiando em Deus. Cada uma das três pessoas que constituíam a Sagrada Família soube atuar com responsabilidade e respeito ante o comportamento dos outros. Jesus gera novos modelos de relação a partir do respeito à identidade pessoal, escuta, acompanha, pergunta ou responde, mas não impõe, deixa espaço à pessoa para que faça seu próprio caminho. Uma família construída a partir do amor não é aquela na qual não há conflitos, mas sim na qual os conflitos se resolvem no diálogo sincero e na confiança. “Nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada de uma vez para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar.” (Amoris Laetitia n. 325) Jesus como adolescente toma suas próprias decisões, e decide ficar em Jerusalém sem avisar a seus pais. As prioridades deles e as suas não eram as mesmas. Quantas vezes não aconteceu isso conosco? Quantas vezes não entendemos por que para meu filho ou para minha mãe “isso” é tão importante? O texto nos mostra como ser um bom filho ou um bom pai não consiste em viver em um acordo permanente (que provavelmente será superficial), mas sim em administrar os conflitos de cada dia a partir da confiança que surge ao saber que a pessoa que temos em frente nos quer, que ainda que não nos entenda podemos contar com ela, e que sempre teremos um lugar em seu coração. É neste sentido, como eu creio que deveremos apresentar hoje a Sagrada Família como modelo de família cristã. Uma família com uma estrutura familiar especial e diferente ao que entendemos que deve ser hoje uma família autenticamente cristã. Uma família única e irrepetível, atípica, que sai do marco normal que os judeus entendiam por família tradicional. Mas o comportamento individual de cada uma das três pessoas que compõem esta Sagrada Família é exemplar e imitável por cada um dos membros de qualquer família cristã de hoje. O que tem a ver a família de Nazaré com a atual família humana? Como ela nos pode iluminar e inspirar? Primeiramente temos de reconhecer a radical diferença de situações e de modelos de família. Não há apenas uma distância de séculos, mas também uma distância cultural muito grande. Mas, tanto lá como aqui, estamos diante de pessoas humanas que se amam, se respeitam e se cuidam, que se angustiam, que têm seus problemas e que buscam ser felizes. O núcleo imutável da família é o afeto, o cuidado de um para com o outro e a vontade de estarem juntos. Esse lado de relação, de amor, de cuidado, de fé e de fidelidade a três, os transformaram em modelo cristão. Em segundo lugar, a Sagrada Família deve ser para nós, não tanto um modelo de família estrutural, ao qual devamos imitar, mas sim um modelo de comportamento individual de cada um dos seus membros, dentro da estrutura da família atual. Talvez, hoje mais que nunca, faz falta nas famílias saber valorizar a liberdade e a responsabilidade de cada um dos seus membros. O amor familiar deve manifestar-se sempre com o devido respeito às peculiaridades e comportamentos de cada um. Pertencer à mesma família já não supõe como talvez supusesse em outros tempos, as mesmas ideias religiosas, políticas e sociais. Nem tampouco, os mesmos comportamentos. A família hoje influenciada pela cultura dominante está sendo arrastada por vários fatores: o ritmo da vida moderna, o regime de trabalho do casal terceirizando funções que antes eram próprias da família como o cuidado e a educação dos filhos etc. a erotização generalizada dos meios de comunicação e a grande influência desses meios na opinião e no modo de vida das pessoas, as dificuldades econômicas, o consumismo; a família está mais interessada em oferecer bens materiais e os valores não materiais como: gratuidade, solidariedade, amor, fé, ocupam lugar irrelevante; a desvalorização da religião como geradora de sentido para a vida, a dimensão espiritual se perdendo juntamente com a perda dos valores éticos, morais e humanos; o individualismo, a introdução das separações dando lugar a famílias unipessoais ou multiparentais, com conhecidos problemas de relacionamentos, onde as maiores vítimas são as crianças. A ausência cada vez maior de um dos genitores junto aos filhos, as novas formas de coabitação crescem no mundo todo, as uniões homoafetivas, as uniões livres ou consensuais que perduram enquanto houver parceria etc. Toda essa multifacetada realidade da família nos leva a pensar que ela está mudando: tem hoje outro perfil e outro papel na vida das pessoas, e por isso tem outra importância, comparada à situação de algumas décadas atrás. Mudanças sempre acontecerão. Nossa preocupação não deve ser a de manter a família onde estava e como era no passado, mas, ajudá-la a encontrar sua nova posição, sem que os fatores negativos da cultura contemporânea a destruam ou a desfigurem. Que estes dias de festa nos sirvam para recordar o que é realmente importante: Jesus nasce e com seu nascimento nos recorda quão afortunados somos porque um dia todos fomos esse recém nascido ao qual alguém acolheu em seus braços e cuidou. Tomara sejamos capazes de olhar nossos entes queridos assim e transmitir-lhes nosso amor, sabendo que por maior que seja nosso amor, não será mais que um pálido reflexo do amor que Deus nosso Pai nos tem a cada um de nós. Pe. José Assis Pereira Soares

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