Heresias velhas e novas

Atualizado em 25/06/19 às 10:364 minutos de leitura373 views
O gnosticismo como conjunto de correntes filosóficas floresceu no mundo mediterrâneo do II século. Gnostikós, termo grego que significa algo ou alguém que é capaz de conhecer, indicava o desejo de um conhecimento elevado, íntimo e especial dos segredos do universo. Os gnósticos consideravam a existência humana neste mundo como não natural, por estar submetida a diversos sofrimentos. O caminho para libertação desses sofrimentos seria através do conhecimento intuitivo e transcendental. Na compreensão gnóstica, a salvação, deveria ser da ignorância e não do pecado. O conhecimento intelectual não era apenas o meio de salvação, era a única e real salvação. O pelagianismo surgido por sua vez no V século, foi um conceito relacionado à Pelágio da Bretanha. Ensinava que todo homem é totalmente responsável pela sua própria salvação e, portanto, não necessitado da graça divina. Segundo os pelagianos, todo homem nasce moralmente neutro, sendo capaz, por si mesmo, sem qualquer influência divina, de salvar-se quando assim o desejar. Na Antiguidade, os chamados Padres da Igreja como Irineu de Lião, Agostinho de Hipona, entre outros patrísticos, refutaram estas argumentações, preservando a fé cristã dos desvios e equívocos teológicos, correntes à época. A patrística em seu conjunto contem os tratados dos pastores de alma, pregadores, exegetas, teólogos e apologetas que buscavam antes de tudo a exposição e clarividência da doutrina cristã. Interessa-nos perceber como esta problemática não se encerrou nos séculos primeiros do cristianismo, mas se desdobrou nos acontecimentos da história, seja de modo teórico ou prático. A este respeito, alertou-nos o Papa Francisco em sua mais recente Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, sobre o gnosticismo e o pelagianismo, duas falsificações da santidade, inimigos sutis de alarmante atualidade. O gnosticismo – diz-nos o Santo Padre – relaciona-se à tendência de supor uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam. O gnosticismo ameaça a verdadeira fé, porque concebe a mente sem encarnação, é incapaz de tocar a carne sofredora de Cristo nos outros, está engessado numa enciclopédia de abstrações, sem a prática da caridade, resultando em pura vaidade intelectual. Ensina Francisco ainda que o poder dado pelos gnósticos à dimensão da inteligência, alguns começaram a atribuí-lo à vontade humana, aos esforços e competências pessoais.  Aqui se encontra a tendência pelagiana, no sentido de que supõe a existência de super-homens, sem o reconhecimento dos seus limites e da necessária abertura para o crescimento espiritual. Constatamos nas duas tendências heréticas a polarização e o desequilíbrio. A primeira gravita em torno da razão desassociada da carne humana, a segunda absolutiza o fazer humano sem o auxílio da bondade de Deus. O que estas falsas visões estimulam é sempre um sujeito orgulhoso, cheio de si mesmo, seja movido pela própria sabedoria, seja pela exposição dos seus talentos. Para os cristãos, é necessário estar permanentemente vigilantes, pois as heresias introjetam-se não somente ao nível dos conteúdos e elaborações, mas principalmente no que diz respeito à prática pastoral. Em cada atividade que realizamos precisamos perceber se Deus é o centro do nosso pensar e agir ou somos nós mesmos a referência do que propomos e fazemos. Em tempos de forte invocação da subjetividade, precisamos integrá-la no horizonte da vida comunitária, lugar por excelência da fraternidade e da comunhão, lugar onde aprendemos a lavar os pés uns dos outros, conforme o mandamento novo ordenado por Nosso Senhor Jesus Cristo. A Igreja nasceu e cresceu no testemunho dos discípulos que puserem os dons recebidos em partilha e condivisão. Recorda-nos São Lucas, narrando a fisionomia da comunidade cristã no I século: “ Eles mostravam-se assíduos ao  ensinamento dos Apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações. Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração (At 2,42.46) A participação na vida da comunidade e na celebração dos sacramentos continua sendo o lugar mais apropriado para o cristão não enxergar-se superior aos outros, nem pela inteligência, nem tampouco por suas próprias obras, mas sempre aberto à graça e misericórdia de Deus que nos completa, aperfeiçoa-nos e santifica-nos. Querer viver a fé sem a comunidade, sem os seus representantes legítimos e seus organismos, sem a humilde paciência com o processo humano dos irmãos, é fuga e desejo de uma espiritualidade intimista, egocêntrica, desviada e tendenciosa.  Quem perde a comunidade, perde também a genuína fé! Pe Luciano Guedes - Pároco da Catedral e Vigário geral

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