A tensão entre a riqueza e o Reino de Deus

Atualizado em 25/06/19 às 10:046 minutos de leitura554 views
A Palavra de Deus que é viva e eficaz (cf. Hb 4,12-13), coloca-nos hoje perante um tema de atualidade embaraçosa, e ao mesmo tempo de grande complexidade: o cristão em face da riqueza. Sempre houve tensão no seio da comunidade cristã entre a riqueza e o Reino de Deus. Diante da descrição de uma comunidade ideal nos Atos dos Apóstolos (cf. At 2,42-47) que possuía tudo em comum e na qual ninguém passava necessidade, opõe-se a realidade bruta da divisão causada pelas diferenças econômicas entre os cristãos. Sem dúvida, diante dessa situação, e vivendo numa sociedade que sempre adorou a riqueza, a comunidade cristã tem de pronunciar-se sobre o sentido da acumulação de riquezas e a base para sua solução será buscada e respaldada no ensinamento de Jesus. Jesus ensina que para um rico é muito difícil entrar no Reino de Deus, mas não impossível; de fato, Deus pode conquistar o coração de uma pessoa que possui muitos bens e levá-la à solidariedade e à partilha com os pobres. Deste modo ela põe-se no caminho de Jesus Cristo, que, como diz São Paulo, “sendo rico, fez-se pobre por vós, para que vos tornásseis ricos por meio da sua pobreza” (2Cor 8,9). No Evangelho de hoje (cf. Mc 10,17-30) São Marcos relata um encontro de Jesus com um homem rico, único caso em todos os evangelhos de recusa explicita em seguir a Jesus. À pergunta do homem: “Que devo fazer para ganhar a vida eterna?” (v. 17) O Mestre lhe recorda os mandamentos que indicam a relação com o outro, com o próximo. O homem então responde que sempre observou fielmente os mandamentos da Lei de Deus. Quer dizer, aquele homem vivia os mandamentos sem saber para que serviam. Não sabia que o cumprimento destes mandamentos que ele os praticava desde a infância, era o caminho para chegar a Deus e à vida eterna. É que ele está habituado a contar com as suas riquezas, pensa que também a vida eterna se possa de alguma forma “comprar”, talvez cumprindo um mandamento especial. Jesus sabia que aquele homem não era hipócrita, mas religiosamente sincero, por isso, fala-lhe com simpatia: “só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!” (v. 21) Cristo não o condena, não o critica por ser rico, apenas trata de ajudá-lo a dar um passo adiante na vida, no discipulado. Jesus pede mais! Convida o rico a despojar-se completamente das suas riquezas e a aderir à comunidade dos seus discípulos. O homem rico deveria provar a seriedade com que buscava a vida eterna, e a única maneira de prová-lo era vendendo os próprios bens e fazendo-se discípulo. Mas o homem não aceita, “foi embora cheio de tristeza” (v. 22). Jesus então comenta: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” (v.23) Para Ele a riqueza é um obstáculo humanamente impossível, insuperável: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (vv. 24-25) Os discípulos ficam desapontados com a afirmação tão radical de Jesus, sinal de que não haviam entendido a resposta ao homem rico e diziam: “Então, quem pode ser salvo? Jesus disse: Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível” (vv. 26-27). O espanto dos discípulos vem da ideologia religiosa ou mentalidade semita e veterotestamentária que considera a riqueza como sinal do favor e da benção divina na vida da pessoa. É uma ideia presente em certos grupos cristãos ainda hoje, partidários de uma “teologia da prosperidade”, que considera a riqueza sinal de bênção de Deus. A proposta de Jesus não é a riqueza, mas a partilha. Não é a acumulação, mas a solidariedade e a justiça. O apego às riquezas é um mal para as pessoas, porque lhes impedem de seguir a Jesus e a dar espaço para ação de Deus em seu coração. Diante do espanto que causa nos discípulos a impossibilidade de um rico entrar no Reino de Deus, Jesus não atenua sua declaração, mas a agrava de tal forma que eles se sentem totalmente desconcertados. Jesus foi pobre, sua vida pode ser definida como compromisso total com o pobre. Para Jesus não basta abster-se de causar o mal aos outros, se se quer entrar no Reino de Deus. Não se pode seguir a Jesus e à riqueza. Se se segue a Jesus, é necessário que se esteja a serviço incondicional dos pobres, ou usar os próprios bens de modo evangélico numa economia solidária. É certo que a riqueza oferece certa segurança às pessoas e estas encontram muita dificuldade para privar-se ou desapegar-se de seus bens e desta segurança. Aquele homem se foi triste porque lhe custava muito deixar seus bens, talvez o mesmo que a nós, custa dar-nos conta de que estamos metidos em uma teia de aranha, o consumismo, do qual nos é muito difícil sair. Presos aos prazeres, bem estar e benefícios que os bens nos proporcionam vivemos preocupadas por defender nossos próprios interesses. O apego às riquezas ou aos bens dificulta as relações com os outros, fecha-nos egoisticamente à partilha com os necessitados, entorpece a solução do problema da fome e da pobreza do nosso país e do mundo e finalmente, a nível cristão, torna impossível o seguimento de Cristo. “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus” (v. 23) Esse ensinamento é tão válido hoje para nós, como o era para os seus primeiros discípulos. Porque, em nossa sociedade atual, o dinheiro é o meio para conseguir quase tudo o que temos e queremos ter: o bem-estar, a casa, o carro, as roupas, as viagens, os pequenos prazeres que nos damos... Não são só os ricos que amam o dinheiro, igualmente os pobres. Os ricos, porque não querem perder o que têm, os pobres porque querem conseguir o que não têm. Corremos um perigo: pensar que o ensinamento de Cristo é só para os ricos de fato, e não para todos os que querem ser discípulos, e herdar a salvação de Deus, entrando no seu Reino. Mas este ensinamento é universal pois todos temos “alma de rico”, mesmo os pobres apegados ao que pouco possuem. Jesus deixa claro que é muito difícil conciliar riqueza e Reino de Deus. E não porque os bens materiais sejam maus em si, mas sim porque muitas riquezas são obtidas por meios injustos, ilícitos ou frequentemente convertem a pessoa em insensível e indiferente à miséria em que vive a maioria. Hoje, quando a Igreja eleva à honra dos altares o Papa Paulo VI, que levou adiante o Concílio Vaticano II e Dom Oscar Romero, figura luminosa de Pastor da América Latina, que deu sua vida pela Igreja e seu povo salvadorenho. Homens santos, homens de fé, de oração, de completa dedicação ao Evangelho, ambos amigos dos pobres, sobretudo dos povos empobrecidos da nossa América Latina, peçamos ao Senhor, que nos conceda a sabedoria, dom do Espírito Santo, que nos faça refletir sobre o legado de Dom Oscar Romero na luta incessante pelos direitos dos pobres, direitos humanos. Pois ele dizia “a gloria de Deus é a vida dos pobres”. Fazemos nossas as palavras do diretor da FAO, José Graziano da Silva: “Vejo o espírito do Arcebispo Oscar na imagem de um romeiro que caminha por terras latino-americanas, a propor o diálogo democrático no lugar da violência armada e a lutar incessantemente pelos direitos humanos. No momento em que a sociedade brasileira vê preocupantes sinais de que o debate de ideias é substituído pelo ódio, pelo rancor e até mesmo pela força bruta, proponho uma reflexão sobre o legado do Arcebispo Romero e sua cruzada por uma sociedade mais justa, coesa e pacífica.” Pe. José Assis Pereira Soares

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